Macron ganhou com quase 66% dos votos! Um valor sugerindo que talvez
ganhe com maioria absoluta as legislativas.
Um par de horas antes de se conhecerem os resultados, os estúdios
televisivos franceses dedicaram-se a uma conversa estranha. As previsões já se
conheciam, davam Macron acima dos 62%, mas não se podia ainda, por lei, falar
de quem ganhou e por quanto. A confirmarem-se essas previsões, seria
"só" a segunda maior diferença de votos na história das dez
presidenciais da V República - só Chirac ganhara por mais, contra o pai Le Pen,
em 2002. A lei é para se cumprir e ontem os jornalistas não anunciaram, e bem,
a previsão que já conheciam. Mas como tinham um outro número, e esse não
proibido de divulgar, salivaram com ele e deram-lhe uma importância inusitada e
indevida.
Ora, o bom senso, que ainda é lei comum e permitida, deveria
aconselhá-los a que durante o obrigatório tempo de espera não epilogassem, não
insistissem e não mantivessem uma longa discussão sobre um quase fait divers. O
outro número que os jornalistas tinham era sobre a abstenção, próxima dos 25%.
E desta falaram longamente como se fosse uma catástrofe. É certo que era a
maior desde 1969, mas fazia isso algum sentido real?
Não só haver quase 75% de cidadãos a votar - três em quarto! - é uma
quantidade que tomara a esmagadora maioria dos países europeus ter como,
sobretudo, era um assunto irrelevante comparado com a revelação que os
jornalista iriam fazer, e sabiam que iam fazer, às 20.00. E, a essa hora, a
revelação caiu ainda mais extraordinária: Macron ganhou com quase 66% dos
votos! Quer dizer, um valor sugerindo que ele talvez ganhe com maioria absoluta
as próximas legislativas - facto primeiro e crucial. E, dois, Marine Le Pen
(34%) teve uma derrota que a afasta, como se verá em junho, de líder da
oposição. Os factos que contam são estes, mas o palavreado da noite quase os
afogou.
Este episódio de conversa surreal não é só francês - e os jornalistas
franceses pelo menos podem justificar-se com a vontade de homenagear André
Breton, o papa do surrealismo. É uma forma demasiado difundida entre os que,
apesar de terem como profissão informar, estão sujeitos à pressão de dizer
coisas quando não têm tempo, ou saber, para medir a importância das coisas.
Esse mal da informação moderna, a falta de ponderação - do que se está a falar
quando se está a falar? -, enfraquece a democracia e leva-nos a não saber o que
é e o que não é importante. Esta campanha eleitoral francesa que desembocou
ontem numa situação histórica (histórica, mesmo, não no sentido de o Sporting
de Braga ter sete vitórias seguidas nem do gato que mama numa cadela) esteve
cheia dessa incapacidade de se contar o que sucedia frente aos olhos de todos.
Há 15 dias, na noite da primeira volta, Macron foi com os seus festejar
para um lugar decente e de bom gosto - caramba, pelo café La Rotonde andou
Picasso e Hemingway, e não era caro então e não o é hoje. Mas, logo, assessores
de Marine Le Pen lembraram que numa outra noite eleitoral, em 2007, Sarkozy foi
festejar para o Fouquet"s, restaurante chic. A não notícia foi engolida,
isco e anzol juntos, e o acontecimento normal da Rotonde foi repetido e
repetido pelos jornalistas. Passou a escândalo ou, pelo menos, a gaffe de um
candidato que não entendia a crise e os dramas sociais... Ainda ontem, havia
quem nas televisões lembrasse La Rotonde. E isso quando, oh ironia, se mostrava
Marine Le Pen a acabar a sua jornada eleitoral no Chalet du Lac, que foi o
palácio de verão do imperador Napoleão III.
Poucos viram também que no "caso Whirlpool", o mais famoso
episódio da segunda volta, acontecido numa fábrica em greve, em Amiens - onde
no mesmo dia apareceram os dois candidatos -, demonstrou-se, em Marine e
Macron, duas forças diversas. Em Marine, a peixeirada; em Macron, apesar de
cercado por operários com justa cólera, a firmeza de não fazer promessas que
não podia cumprir. Foi aí o ponto de viragem da opinião pública sobre o betinho
ex-banqueiro.
E, depois, o debate a dois. Nos editoriais, assinados por diretores com
peso e apoiados pelo peso dos jornais, a opinião unânime. Le Monde (centro),
Figaro (direita) e Libération (esquerda): Macron arrasou. Na narração do
debate, a quente e feita por plumas menos prestigiadas e sem serem espaldadas
pelo cargo, disse-se: um debate agressivo, violento e mentiroso (deixando
subentendido que os dois candidatos estão um para o outro)... E o que aconteceu
foi isto: Macron arrasou. Ponto. Como disseram os jornalistas poderosos e como
não disseram, porque não sabiam ou não podiam dizer, os que não eram poderosos.
A votação de ontem mostrou que naquele debate também a opinião pública viu o
óbvio.
O óbvio é - e quase toda a gente o vê. Ontem, Emmanuel Macron foi festejar
para o Louvre. O Louvre, onde se entra por uma pirâmide, inspirada nas egípcias
antigas e desenhada por um chinês moderno, o Louvre que tem a Vénus de
Samotrácia, grega, e a florentina Gioconda. Lá, Macron disse o óbvio: "A
Europa e o mundo olham a França e esperam que ela defenda o espírito das
Lumières." No estúdio do canal CNews, a representante do ex-candidato
Jean-Luc Mélenchon disse: "Macron escolheu o Louvre, que é o símbolo da
monarquia." O óbvio não é necessariamente visto por todos.
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