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segunda-feira, 8 de maio de 2017

A França mudou ontem e talvez nos mude:

Macron ganhou com quase 66% dos votos! Um valor sugerindo que talvez ganhe com maioria absoluta as legislativas.

Um par de horas antes de se conhecerem os resultados, os estúdios televisivos franceses dedicaram-se a uma conversa estranha. As previsões já se conheciam, davam Macron acima dos 62%, mas não se podia ainda, por lei, falar de quem ganhou e por quanto. A confirmarem-se essas previsões, seria "só" a segunda maior diferença de votos na história das dez presidenciais da V República - só Chirac ganhara por mais, contra o pai Le Pen, em 2002. A lei é para se cumprir e ontem os jornalistas não anunciaram, e bem, a previsão que já conheciam. Mas como tinham um outro número, e esse não proibido de divulgar, salivaram com ele e deram-lhe uma importância inusitada e indevida.

Ora, o bom senso, que ainda é lei comum e permitida, deveria aconselhá-los a que durante o obrigatório tempo de espera não epilogassem, não insistissem e não mantivessem uma longa discussão sobre um quase fait divers. O outro número que os jornalistas tinham era sobre a abstenção, próxima dos 25%. E desta falaram longamente como se fosse uma catástrofe. É certo que era a maior desde 1969, mas fazia isso algum sentido real?

Não só haver quase 75% de cidadãos a votar - três em quarto! - é uma quantidade que tomara a esmagadora maioria dos países europeus ter como, sobretudo, era um assunto irrelevante comparado com a revelação que os jornalista iriam fazer, e sabiam que iam fazer, às 20.00. E, a essa hora, a revelação caiu ainda mais extraordinária: Macron ganhou com quase 66% dos votos! Quer dizer, um valor sugerindo que ele talvez ganhe com maioria absoluta as próximas legislativas - facto primeiro e crucial. E, dois, Marine Le Pen (34%) teve uma derrota que a afasta, como se verá em junho, de líder da oposição. Os factos que contam são estes, mas o palavreado da noite quase os afogou.

Este episódio de conversa surreal não é só francês - e os jornalistas franceses pelo menos podem justificar-se com a vontade de homenagear André Breton, o papa do surrealismo. É uma forma demasiado difundida entre os que, apesar de terem como profissão informar, estão sujeitos à pressão de dizer coisas quando não têm tempo, ou saber, para medir a importância das coisas. Esse mal da informação moderna, a falta de ponderação - do que se está a falar quando se está a falar? -, enfraquece a democracia e leva-nos a não saber o que é e o que não é importante. Esta campanha eleitoral francesa que desembocou ontem numa situação histórica (histórica, mesmo, não no sentido de o Sporting de Braga ter sete vitórias seguidas nem do gato que mama numa cadela) esteve cheia dessa incapacidade de se contar o que sucedia frente aos olhos de todos.

Há 15 dias, na noite da primeira volta, Macron foi com os seus festejar para um lugar decente e de bom gosto - caramba, pelo café La Rotonde andou Picasso e Hemingway, e não era caro então e não o é hoje. Mas, logo, assessores de Marine Le Pen lembraram que numa outra noite eleitoral, em 2007, Sarkozy foi festejar para o Fouquet"s, restaurante chic. A não notícia foi engolida, isco e anzol juntos, e o acontecimento normal da Rotonde foi repetido e repetido pelos jornalistas. Passou a escândalo ou, pelo menos, a gaffe de um candidato que não entendia a crise e os dramas sociais... Ainda ontem, havia quem nas televisões lembrasse La Rotonde. E isso quando, oh ironia, se mostrava Marine Le Pen a acabar a sua jornada eleitoral no Chalet du Lac, que foi o palácio de verão do imperador Napoleão III.
Poucos viram também que no "caso Whirlpool", o mais famoso episódio da segunda volta, acontecido numa fábrica em greve, em Amiens - onde no mesmo dia apareceram os dois candidatos -, demonstrou-se, em Marine e Macron, duas forças diversas. Em Marine, a peixeirada; em Macron, apesar de cercado por operários com justa cólera, a firmeza de não fazer promessas que não podia cumprir. Foi aí o ponto de viragem da opinião pública sobre o betinho ex-banqueiro.

E, depois, o debate a dois. Nos editoriais, assinados por diretores com peso e apoiados pelo peso dos jornais, a opinião unânime. Le Monde (centro), Figaro (direita) e Libération (esquerda): Macron arrasou. Na narração do debate, a quente e feita por plumas menos prestigiadas e sem serem espaldadas pelo cargo, disse-se: um debate agressivo, violento e mentiroso (deixando subentendido que os dois candidatos estão um para o outro)... E o que aconteceu foi isto: Macron arrasou. Ponto. Como disseram os jornalistas poderosos e como não disseram, porque não sabiam ou não podiam dizer, os que não eram poderosos. A votação de ontem mostrou que naquele debate também a opinião pública viu o óbvio.

O óbvio é - e quase toda a gente o vê. Ontem, Emmanuel Macron foi festejar para o Louvre. O Louvre, onde se entra por uma pirâmide, inspirada nas egípcias antigas e desenhada por um chinês moderno, o Louvre que tem a Vénus de Samotrácia, grega, e a florentina Gioconda. Lá, Macron disse o óbvio: "A Europa e o mundo olham a França e esperam que ela defenda o espírito das Lumières." No estúdio do canal CNews, a representante do ex-candidato Jean-Luc Mélenchon disse: "Macron escolheu o Louvre, que é o símbolo da monarquia." O óbvio não é necessariamente visto por todos.



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