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sexta-feira, 21 de abril de 2017

Ver França por um holograma:

ferreira_fernandes
A última vez que passei pela cidade de Dijon, no Leste de França, foi há mais de 40 anos, ia a caminho de Besançon, apoiar a Lip, uma fábrica de relógios em greve e em autogestão. A Lip tinha feito os primeiros relógios de quartzo franceses, era a mais importante empresa da cidade, não aguentou a concorrência japonesa, faliu. Os operários tinham decidido prescindir dos patrões, ocuparam a fábrica, guardaram o stock dos relógios como tesouro de guerra, puseram em marcha novas produções e lançaram-se no mercado. Era a Alemanha insurrecta de Rosa Luxemburgo do após Grande Guerra, mas desta vez numa fábrica de ponta. Ao voltar para Paris nem dei pelos campos amarelos de mostarda nem por um barulho martelado que julguei vir do porta-luvas. O motor do meu velho Citroën Ami 6 vermelho gripou. Eu devia saber, a Rosa acabou fuzilada e a Lip também já não se sentia lá muito bem. A greve terminaria meses depois.
Esta semana entrei mesmo em Dijon e mais uma vez estava interessado em experiências sociais e novas tecnologias. Ando mais solto, vi a beleza dos campos amarelos e confio no óleo dos automóveis. Fui a Dijon por duas razões, o candidato presidencial Jean-Luc Mélenchon e os hologramas. Já conhecia os hologramas. Um dia, na Catedral de Notre-Dame, na cidade do Quebec, apareceu-me no púlpito um padre de paramentos antigos e falando velho francês. Ele era luz em três dimensões, nenhuma aparição celeste, só saber dos homens, um holograma. Na terça-feira, Mélenchon ia, ele mesmo, estar num comício em Dijon, e, em holograma e em direto, para comícios em seis outras cidades francesas, incluindo Le Port, na ilha da Reunião, território francês no mar Índico.
Talvez me tivesse já cruzado com ele na minha infeliz jornada de apoio aos grevistas da Lip – éramos mais ou menos da mesma idade, ambos pieds-noirs (brancos de África, ele nasceu em Marrocos) e ele vivia então em Besançon. Mas certamente não nos falámos, ele era trotskista, da corrente errada, eu era da certa. Entretanto, eu fui à minha vida e ele à dele, o que incluiu, porque ele era brilhante, na viragem do século ter sido membro do governo socialista de Lionel Jospin, que também era da tal corrente errada do trotskismo, que tinha a mania de entrar no PS francês para o ganhar clandestinamente por dentro. Mélenchon, em 2009, saiu do PS. Uma saída, ao que parece, mais eficaz do que qualquer entrismo. Hoje, Mélenchon é um dos quatro candidatos presidenciais (com a radical de direita Marine Le Pen, Fillon, da direita, e o centrista sem partido Macron) que disputam as duas qualificações, no domingo, para a eleição final, a 7 de maio. Já o candidato socialista Benoît Hamon está irremediavelmente afastado.
O pavilhão estava cheio e o público repartido entre sessentões e jovens. A casa dos 40 estava pouco representada. O velho Maio de 68, que hoje já ninguém evoca mas ainda move quem por lá andou, e o “isto”, que sobretudo quem começa a vida não quer – Mélenchon, radical, igualitário e laico, junta uma saudade desesperada e um desconfiança firme. A França Insubmissa, chama-se em slogan. Ele pode ser mais um fogo fátuo para aqueles que andam à procura da rolha, mas a verdade é que por enquanto se faz ouvir. Ninguém diria há dois meses que estaria no quarteto renhido final.
Ele diz: “Querer ser multimilionário é uma neurose.” Que deixa de ser só frase boa e passa a fazer sentido quando ele a explica que com dedos de duas mãos se contam os homens com tanta fortuna como todos habitantes de continentes inteiros. De que vale tanto a tão poucos, mesmo na ótica do interesse desses poucos? Quando o mundo precisa de psicanálise, não há políticas irrealistas… Mélenchon sabe falar.
E então o holograma não é senão um meio, símbolo tecnológico a dar expressão a essa vontade de convencer. O multimeeting, ouvido e visto em simultâneo, na capital da Borgonha, numa ilha do Índico e em mais cinco cidades, e tudo pelo mesmo preço (150 mil euros) da organização de um comício dos rivais – era a sugestão para a ideia do programa de Mélenchon de que trabalhar menos horas pode ser mais rentável… Sobretudo quando o discurso se passeia por questões tão atuais quanto a da automatização. Se esta causa desemprego e não queremos nem podemos partir as máquinas como os operários do início da Revolução Industrial, não seria, já, de começar a pensar o trabalho de forma moderna?
No palco, Jean-Luc Mélenchon passeia-se sozinho como num espetáculo de stand-up, de casaco de marçano chique e calças de ganga, pondo estas questões. Comecei por pensar que da mesma forma que ele dava à sua candidatura um símbolo grego, a letra “phi”, significando sabedoria, ele era só pedante. Depois, ele, que ao longo da campanha trata com pinças uma questão fundamental francesa – uma forte comunidade islâmica que resiste em se integrar -, começou a insistir nesta ideia: as mulheres e os homens são iguais. Dito sobre a ideia, vai direto ao problema islâmico. E foi dito também com aplicações práticas: a igualdade dos salários das mulheres vai ajudar a refinanciar as reformas em geral. Não sei se as contas estão certas, sei é que nesse momento do discurso um meu vizinho saltou da cadeira e se pôs a gritar: “Mélenchon Président!”
Dizia mal o “erre”, chamava-se Abdullah, 28 anos e dez de França, era jardineiro nos serviços municipais de Dijon. Nascera na Mauritânia e era negro retinto como aqueles que, no seu país e com a sua idade, ainda conhecem a escravatura.
E lá estava aquele cidadão, vindo de tão atrás, a gritar por essa tecnologia social tão de ponta que é a igualdade da mulher: “C”est la France!” O comício acabou com uma frase estranha: “Liberdade, igualdade, fraternidade.” É frase batida mas nunca ninguém resumiu melhor o viver em comum. Borregará tudo como a Rosa e o Lip?
(Ferreira Fernandes, in Diário de Notícias, 21/04/2017) 

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