Rádio Freamunde

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sábado, 25 de abril de 2015

Mais umas linhas sobre a falecida ideia:

Pelas fotos tinham ar alucinado. E eram alucinados (ele estava preso por bater na mãe e ela fora condenada a 18 anos por matar um cliente). E foram considerados alucinados a ponto de serem internados na ala psiquiátrica dum hospital. Isto que conto soube-o por um jornal, logo, os seus jornalistas deveriam conhecer a perigosidade do par. A história era contada em duas páginas. No hospital, o homem que batia na mãe e a mulher que atropelou um cliente para o roubar e com ele no chão lhe esfaqueou a cabeça conheceram-se, apaixonaram-se e fugiram num domingo, dois dias antes de a notícia ser publicada.
Depois da fuga, o casal roubou um carro e rumou para uma casa da aldeia do homem. Ele vivia numa freguesia de 925 pessoas (censo de 2011), onde todos se conhecem e quotidianamente se cruzam. De madrugada, o homem foi a casa dum amigo, deixou lá a companheira e, no dia seguinte, partiu sozinho para assaltar uma pastelaria. Na estrada encontrou uma barreira da GNR, atirou o carro contra o carro dos guardas, fugiu a pé pelos montes mas foi preso. Alucinado. Já vos disse? Eu sei, é só para lembrar que os jornalistas do jornal também o sabiam.
Como já disse, a notícia tinha duas páginas. Na par, havia uma caixa sobre um pormenor e com este título: "Amigo que deu abrigo alertou as autoridades." No texto, o jornal repetia que o cidadão XXX - isto sou eu a ter o cuidado de não dar o nome, o jornal pôs o nome verdadeiro - denunciou os fugitivos: "(...) na primeira oportunidade alertou a GNR". O jornal falou com o pobre homem, "ainda assustado". O texto é ilustrado por uma foto deste, à porta, falando com a repórter do jornal. A foto é feita de longe, é de supor que o homem "ainda assustado" não quis ser fotografado. A legenda: "XXX [o jornal voltou a pôr-lhe o nome verdadeiro] acolheu casal"...
O que eu quero dizer é o seguinte: um alucinado, que daqui a meses será posto à solta, sabe que na sua aldeia há um amigo que o denunciou. Não suspeita, sabe. Escrito, e até em letras gordas, e fotografado por um jornal. Com o nome escarrapachado e foto tirada à socapa, mas visível, à porta de casa. Aquele cidadão estava, no dia seguinte, "ainda assustado", disse o jornal. Eu tenho a certeza de que hoje, cerca de dois meses depois da notícia, o pobre homem continua assustado. Ele deve tremer a pensar na data dum determinado mandado de soltura.
E era aqui que queria chegar. Eu sei que os jornais precisam de ter um órgão regulador que controle aquele enorme poder que eles têm. E sei que a canalhice e a burrice (mais esta) de alguns jornalistas os leva, aos jornais, a cometer erros que podem ter consequências graves, até fatais. Nas duas páginas irresponsáveis narradas acima, caso um drama aconteça, os advogados do patrão saberão escamotear as culpas do jornal - o direito de informar, um bem sagrado, também pode ser refúgio de canalhas e/ou burros. Por isso é bom que haja uma entidade específica que proteja todos, e sobretudo os mais frágeis, dos desmandos do jornalismo. Uma entidade que esteja atenta, critique e multe quando crianças vítimas de crimes são fotografadas e inocentes são difamados. E, como no caso narrado, cidadãos são colocados em perigo pela irresponsabilidade jornalística.
Ora, por estes dias o que preocupou os deputados dos grandes partidos foi desviar a vigilância aos jornais para a sua coutada. Os deputados queriam mais um órgão (comissão mista) ao qual os jornais deveriam submeter para visto prévio o seu plano de cobertura das eleições. Desde logo, a sugestão do visto prévio até inoportuna foi, pecado menor (o maior é que é indefensável, ponto final), porque apresentada nas vésperas da data, o 25 de Abril, que aboliu a censura. Depois, o processo foi deixado para a ponta final da legislatura, a poucos meses da campanha eleitoral, dando a ideia duma emboscada. E feita por eles (deputados) à pressa, pedia, paradoxalmente, aos outros (os jornais) planeamento... Enfim, uma trapalhada. A proposta teve o destino merecido: falou-se um pouco e escorreu pelo ralo, envergonhada.
Mas o episódio vale pela confirmação da igualdade vigente, em que uns são mais iguais do que outros. Casos infames de jornais - como oferecer publicamente um cidadão a próxima e mais do que provável tareia (no melhor dos casos...) por parte dum alucinado - passam sem a punição necessária. Toca ao povo, indiferença. Mas quando toca aos pretendidos abusos dos jornais sobre os representantes do povo estes já são tesos (enfim, durante algumas horas).
FERREIRA FERNANDES
Hoje no DN

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