Fez no dia 6 de abril quatro anos que Portugal pediu ajuda
internacional. É mais do que tempo de fazer o balanço dos erros, mentiras e
traições deste período e desconstruir o discurso que os vencedores têm produzido
sobre o que se passou.
1 A 4 de abril, Angela Merkel elogia os esforços do Governo português
para combater a crise, através de um novo plano de austeridade, o PEC 4. Com o
apoio da chanceler alemã e do presidente da Comissão Europeia havia a real
possibilidade de Portugal conseguir um resgate mais suave, idêntico ao que
Espanha depois veio a ter. O primeiro-ministro, José Sócrates, dá conta ao
líder da oposição, Pedro Passos Coelho, do que se passa. Este, pressionado pelo
seu mentor e principal apoio partidário, Miguel Relvas, recusa-se a deixar passar
o PEC 4, dizendo que não sabia de nada e que não apoiava novos sacrifícios. O
seu objetivo é a queda do Governo e eleições antecipadas (ver o livro
“Resgatados”, dos insuspeitos jornalistas David Dinis e Hugo Filipe Coelho). O
Presidente da República, Cavaco Silva, faz um violento ataque ao Governo no seu
discurso de posse, a 4 de abril, afirmando não haver espaço para mais
austeridade. Os banqueiros em concertação pressionavam o ministro das Finanças.
Teixeira dos Santos cede e coloca o primeiro-ministro perante o facto
consumado, ao anunciar ao “Jornal de Negócios” que Portugal precisa de recorrer
aos mecanismos de ajuda disponíveis. Sócrates é forçado a pedir a intervenção
da troika. Merkel recebe a notícia com estupefação e irritação.
2 O memorando de entendimento (MoU) é saudado por políticos alinhados
com a futura maioria, por economistas de águas doces, por banqueiros cúpidos e
por comentadores fundamentalistas e bastas vezes ignorantes, pois, segundo
eles, por cá nunca ninguém conseguiria elaborar tal maravilha. Hoje, pegando
nas projeções para a economia portuguesa contidas no MoU, é espantoso constatar
a disparidade com o que aconteceu. Em vez de um ano de austeridade tivemos
três. Em vez de uma recessão não superior a 4%, tivemos quase 8%. Em vez de um
ajustamento em 2/3 pelo lado da despesa e 1/3 pelo lado da receita, tivemos
exatamente o contrário: uma austeridade de 23 mil milhões reduziu o défice
orçamental em apenas 9 mil milhões. Em vez de um desemprego na casa dos 13%,
ultrapassámos os 17%. Em vez de uma emigração que não estava prevista, vimos
sair do país mais de 300 mil pessoas. E em vez da recuperação ser forte e
assente nas exportações e no investimento, ela está a ser lenta e anémica,
assentando nas exportações e no consumo interno. A única coisa que não falhou
foi o regresso da República aos mercados. Mas tal seria possível sem as
palavras do governador do BCE, Mario Draghi, no verão de 2013, ou sem o
programa de compra de dívida pública dos países da zona euro? Alguém acredita que
teríamos as atuais taxas de juro se não fosse isso, quando as agências de
rating mantêm em lixo a nossa dívida pública? Só mesmo quem crê em contos de
crianças.
3 Durante o período de ajustamento, Carlos Costa, governador do Banco
de Portugal, sublinhou sempre que o nosso sistema financeiro estava sólido.
Afinal, não só não estava sólido como tinha mais buracos do que um queijo
gruyère. BCP, BPI e Banif tiveram de recorrer à linha pública de capitalização
incluída no memorando da troika, o BES implodiu, a CGD foi obrigada a fazer
dois aumentos de capital subscritos pelo Estado, o Montepio está em sérias
dificuldades — e só o Santander escapou.
4 O ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, e o primeiro responsável da
troika, Poul Thomsen, negaram durante dois anos que houvesse um problema de
esmagamento de crédito às empresas. Pelos vistos desconheciam que a esmagadora
maioria das PME sempre teve falta de capital, funcionando com base no crédito
bancário. Como os bancos foram obrigados a cortar drástica e rapidamente os
seus rácios de crédito, milhares de empresas colapsaram, fazendo disparar o
desemprego. Gaspar e a troika diriam depois terem sido surpreendidos com esta
evolução. A sobranceria dos que se baseiam na infalibilidade do Excel, aliada à
ignorância dos que pensam que a mesma receita funciona em qualquer lugar, tem
estes resultados.
Alguém acredita que teríamos as atuais taxas de juro se não fosse o BCE
e Draghi, com a nossa dívida pública a continuar a ser considerada lixo? Só
mesmo quem crê em contos de crianças.
5 Passos Coelho disse e redisse que as privatizações tornariam a
economia portuguesa muito mais competitiva, levando os preços praticados a
descer. Pois bem, a EDP foi vendida a muito bom preço porque as autoridades
garantiram aos chineses da Three Gorges que os consumidores portugueses
continuariam a pagar uma elevada fatura energética. E assim tem sido. Os
franceses da Vinci pagaram muito pela concessão da ANA porque lhes foi
garantido que poderiam subir as taxas sempre que o movimento aeroportuário
aumentasse. Já o fizeram por cinco vezes. O Governo acabou com a golden share
na PT e não obstou à saída da CGD do capital da telefónica. Depois assistiu,
impávido e sereno, ao desmoronamento da operadora. A CGD foi obrigada pelo
Governo a vender por um mau preço a sua participação na Cimpor. Hoje, a
cimenteira é uma sombra do que foi: deixou de ser um centro de decisão, de
competência e de emprego da engenharia nacional. Os CTT foram privatizados e
aumentaram exponencialmente os resultados, à custa da redução do número de
balcões e da frequência na entrega do correio.
6 A famosa reforma do Estado resumiu-se na prática a aumentar impostos,
cortar salários, pensões e apoios sociais, bem como a fragilizar as relações
laborais, flexibilizando o despedimento individual, diminuindo o valor das
indemnizações, reduzindo o valor do subsídio de desemprego e o seu tempo de
duração. O modelo económico passou a assentar numa mão de obra qualificada mas
mal paga, em empregos precários e não inovadores, em trabalhadores temerosos e
nada motivados.
7 O programa de ajustamento fez Portugal recuar quase 15 anos. Perdemos
centro de decisão e de competência e não apareceram outros. A classe média
proletariza-se sob o peso dos impostos. Nos hospitais reaparecem doenças e
epidemias há muito erradicadas. O investimento estrangeiro estruturante não
veio, o perfil da economia e das exportações não se alterou, a aposta na
investigação eclipsou-se. E tudo para se chegar a um ponto em que a troika nos
continua a dizer que já fizemos muito mas que é preciso fazer mais — e os
credores internacionais nos vão manter sob vigilância até 2035. Sob o manto
diáfano da fantasia, a nudez forte da verdade mostra que este ajustamento não
teve apenas algumas coisas que correram mal — foi um colossal falhanço. E,
desgraçadamente, os próximos anos vão confirmá-lo.
Nicolau Santos
Expresso 11/04/2015
Expresso 11/04/2015
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