A Justiça é antes de mais um código e um processo na sua fase de
aplicação. Ou seja, obediência cega, essa sim cega, a um conjunto de regras que
protegem os cidadãos da arbitrariedade. Do abuso de poder. Do uso excessivo da
força. Essas regras têm, no seu nó central, uma ética. Toda e qualquer violação
dessa ética é uma violação da Justiça. E uma negação dos princípios do Direito
e da ordem jurídica que nos defendem.
Num caso de tanta gravidade como este, o da suspeita de crimes graves e
detenção de um ex-primeiro-ministro do Partido Socialista, verifico
imediatamente que o processo foi grosseiramente violado. Praticou-se, já, o
linchamento público. Como?
1) Detendo o suspeito numa operação de coboiada cinemática, parecida
com as de Carlos Cruz e Duarte Lima, a uma hora noturna e tardia, num
aeroporto, quando não havia suspeita de fuga, pelo contrário. O suspeito chegava
a Portugal. Porque não convocá-lo durante o dia para interrogatório ou levá-lo
de casa para detenção?
2) Convidou-se uma cadeia de televisão a filmar o acontecimento.
Inacreditável.
3) Deram-se elementos que, a serem verdadeiros, deviam constar em
segredo de Justiça. Deram-se a dois jornais sensacionalistas, o "Correio
de Manhã" e o "Sol", que nada fizeram para apurar o que quer que
seja. Nem tal trabalho judicial lhes competia. Ou seja, a Justiça cometeu o
crime de violação do segredo de Justiça ou pior, de manipulação do caso, que
posso legitimamente suspeitar ser manipulação política dadas as simpatias dos
ditos jornais pelo regime no poder. Suspeito, apenas. Tenho esse direito.
4) Leio, pela mão da jornalista Felícia Cabrita, no site do "Sol",
pouco passava da hora da detenção, que Sócrates (entre outros crimes graves)
acumulou 20 milhões de euros ilícitos enquanto era primeiro-ministro. Alta
corrupção no cargo. Milhões colocados numa conta secreta na Suíça. Uma acusação
brutal que é dada como certa. Descrita como transitada em julgado. Base
factual? Fontes? Cuidado no balanço das fontes, argumentos e contra-argumentos?
Enunciado mínimo dos cuidados deontológicos de checking e fact-checking? Nada.
Apenas "o Sol apurou junto de investigadores". O "Sol" não
tem editores. Tem denúncias. Violações de segredo de Justiça. Certezas. E
comenta a notícia chamando "trituradora" de dinheiro aos bolsos de
Sócrates. Inacreditável.
5) Verificamos apenas, num estilo canhestro a que a biógrafa de Passos
Coelho nos habituou (caso Casa Pia, entre outros) que a notícia sai como
confirmada e sustentada. Se o Watergate tivesse sido assim conduzido, Nixon
teria ido preso antes de se saber se era culpado ou inocente. No jornalismo,
como na justiça, há um processo e uma ética. Não neste jornalismo.
6) Neste momento, não sei nem posso saber se Sócrates é inocente ou
culpado. Até prova em contrário é inocente. In dubio pro reo. A base de todo o
Direito Penal.
7) Espero pelo processo e exijo, como cidadã, que seja cumprido à
risca. Não foi, até agora. Nem neste caso nem noutros. Isto assusta-me. Como me
assustou no caso Casa Pia. Esta Justiça de terceiro mundo aterroriza-me. Isto
não acontece num país civilizado com jornais civilizados. Isto levanta-me
suspeitas legítimas sobre o processo e a Justiça, e neste caso, dada a
gravidade e ataque ao regime que ele representa, a Justiça ou age perfeitamente
ou não é Justiça.
8) Verifico a coincidência temporal com o Congresso do PS. Verifico
apenas. Não suspeito. Aponto. E recordo que há pouco tempo um rumor semelhante,
detenção no aeroporto à chegada de Paris, correu numa festa de embaixada onde
eu estava presente. Uma história igual. Por alturas da suspeita de envolvimento
de José Sócrates no caso Monte Branco. Aponto a coincidência. Há um comunicado
da Procuradoria a negar a ligação deste caso ao caso Monte Branco. A Justiça
desmente as suas violações do segredo de Justiça. Aponto.
9) E não, repito, não gosto de José Sócrates. Nem desgosto. Sou
indiferente à personagem e, penso, a personagem não tem por mim a menor
simpatia depois da entrevista que lhe fiz no Expresso há um ano. Não nos
cumprimentamos. Não sou amiga nem admiradora. É bizarro ter de fazer este ponto
deslocado e sentimental mas sei donde e como partem as acusações de
"socratismo" em Portugal.
10) As minhas dúvidas são as de uma cidadã que leu com atenção os
livros de Direito. E que, por isso mesmo, acha que a única coisa que a Justiça
tem a fazer é dar uma conferência de imprensa onde todos, jornalistas, possamos
estar presentes e fazer as perguntas em vez de deixar escorregar acusações não
provadas para o "Correio da Manhã" e o "Sol". E quejandos.
Não confio nestes tabloides para me informarem. Exijo uma conferência de
imprensa. Tenho esse direito. Vivo num Estado de Direito.
11) Há em Portugal bom jornalismo. Compete-lhe impedir que, mais uma
vez, as nossas liberdades sejam atropeladas pelo mau jornalismo e a manipulação
política.
12) Vou seguir este processo com atenção. Muita. Ou ele é perfeito,
repito, ou é a Justiça que se afundará definitivamente no justicialismo. Na
vingança. No abuso de poder. Na proteção própria. O teste é maior para a
Justiça porque é o teste do regime democrático. E este é mais importante que os
crimes atribuídos a quem quer que seja.
Não quero que um dia, como no poema falsamente atribuído a Brecht,
venham por mim e não haja ninguém para falar por mim. A minha liberdade, a
liberdade dos portugueses, é mais importante que o descrédito da Justiça. A
Justiça reforma-se. A liberdade perde-se. E com ela a democracia.
A opinião de Clara Ferreira Alves sobre a detenção do antigo primeiro-ministro
José Sócrates no Expresso
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