Nenhuma morte é natural, escreveu Jorge de Sena. E a menos natural de
todas as mortes é a morte de Emídio Rangel, acrescento eu. Esta força incomum
de renovar constantemente a criatividade; esta capacidade de impulsionar os
estímulos e de ultrapassar dificuldades imprevistas possuía-as o Rangel em
dimensões desconhecidas noutros homens. O Marcelo fez uma comparação absurda
entre o extraordinário jornalista e o primeiro director do Público. Rangel
partiu praticamente do nada para criar a TSF e a SIC. O outro refez, apoiado em
muito dinheiro, uma ideia de diário com argumentos de semanário, já aplicada,
há muitíssimos anos, por Miguel Urbano Rodrigues no Diário Ilustrado. Um criou
e multiplicou a criação; o outro repetiu, dificultosa e confusamente, um projecto
ainda hoje tropeçante.
Havia, no Emídio Rangel, o sopro dos grandes espaços e das grandes
urgências. Os seus únicos preconceitos eram contra a estupidez, a soberba e a
traição. Provinha, também, de uma convicção ideológica profunda, que o levara a
apoiar, com intensidade militante, a candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo
à Presidência da República. «Mostra-me o teu talento; não me mostres o cartão
do partido.» A frase de Brecht é-lhe facilmente aplicável. E podem crer que sei
muito bem do que falo.
Mas a sua grandeza não se limitava a esta marca de carácter. Somos
módicos, por invejas, despeitos e rancores, a elogiar o engenho, a arte e a
vocação. O homem de quem falo possuía essas e outras virtudes em alto calibre.
E conheci, nos jornais e noutros ramos da comunicação, muita gente que
rechinava os dentes ao saber das grandes inovações, do poder incalculável do
seu génio.
O meu débito de admiração segue a par da estima e do reconhecimento.
Convidou-me a participar num programa da TSF, Crónicas de Escárnio e Maldizer;
e, para a SIC, a protagonizar um programa, Conversas Secretas, previsto para
três meses, e que se prolongou por quase três anos. Qualquer dos convites foi
feito em épocas de aperto para mim. Digamos tudo. Os senhores da imprensa não
me davam trabalho em razão das minhas escolhas políticas. Um deles, então,
afirmou ter suspeitas de que eu era simpatizante da Revolução Cubana, para ele
insuportável. Era e continuo a sê-lo. Esse que tal quase rastejou,
posteriormente, para ser deputado do PS, a fim de dar um jeito à vidinha.
Da minha época na SIC recordo, com emoção, a fraterna ternura
demonstrada por Manuel Tomás, Fátima Silva, muitos mais outros e outras, que
ajudaram o jornalista inexperiente em televisão a fazer do programa o êxito que
o programa obteve. Quando o Rangel foi para a RTP voltou a falar-me, a fim de o
acompanhar num outro propósito. Depois, foi o que foi. Ultimamente tenho
perdido muitos amigos. Emídio Rangel. Adeus.
BAPTISTA BASTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário