Todas as terras têm pontos em comum. A minha não foge a essa regra.
Goza de um estatuto especial que é o da cultura. A cultura vem dos tempos
medievais e há sempre um mito que a vem realçar. E como em todas há uma estória
e geralmente começa por “era uma vez”. Assim começa esta. Era uma vez um lugar
que se julgava inferior aos muitos outros que Freamunde tinha. Nesse lugar as
pessoas tudo fazia para o engrandecer. Mas havia muito a trabalhar para que esse
povo “sofredor” deixasse de o ser. Logo de manhã a labuta era constante. Uns,
para as fábricas, outros, para a construção civil e, ainda outros para a venda
do peixe. Não falando nos trabalhos domésticos que eram infinitos. Era uma
ranchada de filhos e isso acarretava trabalhos dobrados.
A camioneta com o peixe vinha de Matosinhos e parava na Fonte dos
Moleiros, Gandarela, para ali o distribuir pelas sardinheiras e sardinheiros.
Percorriam a Vila - nesse tempo tinha essa categoria - cada uma com a canastra à
cabeça e com lugares marcados. Outras iam para outras terras do concelho porque
a vida assim o exigia.
Ainda recordo piropos que davam às nossas sardinheiras: só sabem vender
sardinha! Mas recebiam como resposta: vendemos a sardinha mas comemos a
galinha! Mas não era isso que sucedia. Era a forma de ficar por cima de quem as
queria ironizar.
As galinhas nesse tempo era um comestível de luxo. Só gente de grandes
posses se podia dar a esse luxo. A maioria tinha como intuito a criação. Quase
todas as casas na Gandarela tinham galinheiros e criavam galinhas. Era a
maneira de equilibrar as finanças caseiras. Uma dúzia de ovos vendidos e uns
frangos para o comércio local vinha mesmo a calhar.
As sardinheiras que iam para fora da terra andavam por lá o dia todo. À
tardinha vinham com a canastra à cabeça mas em vez de transportar peixe traziam
couves, batatas e mais algum tubérculo da época. Era assim a vida das
sardinheiras. Também as suas clientes tinham estima por elas e era por esse
motivo que lhes ofereciam os presentes atrás referidos.
Quando vinha o mau tempo - como o que se faz desde de Dezembro até hoje
- não havia sardinheiras a vender peixe. E como a miséria não anda sozinha
também os maridos que trabalhavam na construção civil não tinham trabalho. O
mau tempo assim determinava. Por isso a miséria habitava naquele lugar. Mas a
Gandarela mostrava-se altaneira para o disfarçar. Era como diziam a quem vinha
com ironias: - “vendemos a sardinha mas comemos a galinha”. Dizia-se mas não se
sentia. Por isso muitas vezes nem tudo o que reluz é ouro. Com isso demonstrava-se
o contrário.
As crianças da minha idade que comigo andavam na escola, daquele lugar,
mostravam a realidade vivida pelas suas famílias. Mas não eram só eles. De
todos os lugares de Freamunde emergiam outras crianças com as mesmas
necessidades. Lá iam para a escola descalças, no tempo de chuva com um saco de
sarapilheira pela cabeça, pareciam pinguins, com a barriga a dar horas mas com
a lição na ponta da língua. Ai de quem não soubesse de cor e salteado onde
nasciam os rios, as serras onde estavam localizadas, o nome das estações do
caminho-de-ferro e seus apeadeiros, levava logo uns bolos da palmatória do
mestre-escola.
Mas parece que por Deus ou por obra do Espírito Santo essa vivência
levava a que os alunos fossem do melhor que há. Com isto não quero dizer que a
fome faz a inteligência! Não. O que quero dizer é que as dores de barriga
ensinam a parir. E, assim há que dar tudo por tudo para não atrasar ano nenhum
para ajudar o quanto mais depressa possível os seus pais no sustento familiar.
Então sem idade de poder trabalhar lá se ia trabalhar. Os patrões
empregavam-nos por consideração aos nossos pais que regra geral também ali eram
empregados. E ali se fazia as praxes. O mandar buscar o ferro das precisas. Uma
barrela a ver se já tínhamos penugem. Esta era a forma de nos tornarmos
adultos. Quantas fugidas por causa dos fiscais do trabalho. Mas tinha de ser
assim. O labutar por uns míseros tostões semanais para fazer face à vida e ao
mesmo tempo para não andar a vadiar. Tornávamo-nos homens enquanto meninos.
Hoje olho para este mundo e vejo meninos que já podiam ser homens. Mas
para quê! Se não têm trabalho e futuro. Tenho ido esperar o meu neto que
frequenta o sexto ano no Ciclo Preparatório de Freamunde e vejo a “realidade”
da nossa juventude. E sinto angústia pelo que um dia lhes venha a acontecer.
Este País não é para jovens e velhos. Nem para os de meia-idade. A única via é
a emigração. Anda-se anos e anos a gastar-se dinheiro com a educação para
depois mandá-los para outros países. Nada me admira que daqui a poucos anos os
nossos alunos se desloquem para a escola com um saco de sarapilheira pela
cabeça. Que de barriga vazia já vão muitos mas têm vergonha de o demonstrar.
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