A gaiola dourada
Nos anos 1960, Portugal era um país pacato e trabalhador, poupado e
prudente, que se sacrificava generosamente, labutando dia e noite para cumprir
os deveres. Frequentemente emigrava e procurava vida melhor noutras terras. E
os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos, gostavam dele, por ser
pacato e trabalhador, poupado e prudente. Havia quem abusasse da sua dedicação,
e ele sabia-o. Sentia-se enganado, mas apesar disso trabalhava com afinco.
Um dia, Portugal recebeu uma boa notícia da terra. Aqueles que abusavam
dele tinham sido afastados. A opressão acabara e ele podia regressar, para
viver rico e feliz na sua própria casa. E Portugal voltou, porque já não seria
preciso ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Era um país democrático,
livre, independente. A nova geração iria viver como os patrões franceses e
alemães. E Portugal gastou. Criou autarquias e dinamização cultural, comprou
frigoríficos e televisões, fez planeamento económico, exigiu escolas e
hospitais.
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Só que a euforia da liberdade política criou um problema de
endividamento. Quatro anos após regressar, Portugal estava falido, com o FMI à
porta, exigindo pagamento. O choque foi grande. Portugal compreendeu que,
afinal, não era como os patrões europeus. Estava tão desgraçado como os
mexicanos, os argentinos, os gregos e outros países da dívida. O buraco era
enorme. Não havia solução.
Foi então que Portugal se lembrou de seus pais, pacatos e
trabalhadores, poupados e prudentes. E perante a austeridade do FMI, Portugal
esforçou-se, apertou o cinto, labutou, amealhou e pagou as dívidas. Os países
credores não acreditavam que fosse possível a recuperação, enquanto os
dirigentes e políticos bramavam contra a nova ditadura do dinheiro e exigiam
direitos. Mas Portugal não quis ouvir e, uns anos depois, tinha a casa em
ordem. Foi espantoso!
Os europeus, admirados, gostaram de Portugal, por ser pacato e
trabalhador, poupado e prudente. Quando o viram de novo com as contas certas e
a vida organizada, aumentaram-lhe o ordenado, ofereceram-lhe sociedade.
Portugal entrou na CEE. Jantou com os antigos patrões, de igual para igual.
Passou a ser europeu.
Até que um dia Portugal recebeu uma boa notícia. Os seus esforços
tinham sido recompensados e ele fora admitido na moeda única. A partir de agora
iria partilhar não apenas instituições e directivas, mas taxas de juro e
crédito. Era finalmente um parceiro a sério, considerado mesmo igual. Pertencia
ao clube, não apenas político, mas financeiro. Podia viver rico e feliz na sua
terra.
E Portugal achou que já não seria preciso ser pacato e trabalhador,
poupado e prudente. A nova geração iria viver como os parceiros franceses e
alemães porque, graças ao euro, pedia dinheiro emprestado nos mesmos bancos e
aos mesmos preços. Casaria até a filha com o filho deles. Era um país
desenvolvido, capitalista, globalizado. E Portugal gastou. Construiu
auto-estradas, fez parques industriais, exigiu computadores para todos os
alunos e novas carreiras médicas.
Só que a euforia da liberdade financeira criou um problema de endividamento.
Dez anos depois de entrar no euro, Portugal estava falido, com a troika à
porta, exigindo pagamento. O choque foi grande. Portugal compreendeu que,
afinal, não era como os países ricos. Estava tão desgraçado como irlandeses,
gregos, argentinos e outros países da dívida. O buraco era enorme. Não havia
solução.
Então Portugal lembrou-se de seus pais e avós, pacatos e trabalhadores,
poupados e prudentes. A nova geração voltou a velhos hábitos. Agora, perante a
austeridade da troika, Portugal esforça-se, aperta o cinto, labuta, poupa e
paga as dívidas. Os credores não acreditam que seja possível a recuperação,
enquanto os dirigentes bramam contra a ditadura do dinheiro e exigem direitos.
Mas Portugal não quer ouvir. Labuta, amealha, emigra e procura vida melhor
noutras terras. E os patrões, franceses ou alemães, suíços ou americanos,
gostam dele por ser pacato e trabalhador, poupado e prudente. Parece um filme!
João César das Neves no DN de ontem
João César das Neves no DN de ontem
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