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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Para conhecimento público:


A lei explicada às polícias,
No sábado à noite, a Polícia Municipal (PM) fechou o 49 da Zé dos bois. Muito há a dizer sobre a acção em si, mas é sobre algo que ocorreu na sequência disso que escrevo. A dada altura, resolvi tirar fotos ao ajuntamento de polícias, responsáveis da galeria e clientes à porta do 49. De imediato, um dos polícias veio pedir-me a identificação, naqueles ríspidos termos do costume. Recusei identificar-me e exigi que me dissesse qual o motivo do pedido. Depois de muito insistir que eu tinha de me identificar só porque ele queria, e de eu lhe explicar que assim não é, e que estão a precisar de um workshop sobre lei e constituição na  PM, invocou as fotografias como motivo.
Segundo o agente, eu não poderia fotografá-lo sem a sua autorização. Ora, se há coisa à qual sou sensível é ao direito à imagem, pelo que à partida o agente da PM teria em mim uma aliada. Sucede que, numa acção pública como aquela, a de fechar um estabelecimento, os agentes da polícia municipal, uniformizados e até identificados com o nome, não podem ter qualquer expectativa de anonimato nem de direito à imagem. O acontecimento é de interesse público e pode ser fotografado, e os agentes 'apanhados' na foto têm tanto direito a indignar-se com isso como um deputado que discursa no parlamento tem de se indignar com as fotos que lhe tiram ou por ser filmado. O mesmo não se aplica a quaisquer outras pessoas -- clientes do bar, por exemplo -- ali presentes, mas nenhuma dessas pessoas, que perceberam que estavam a ser fotografadas, esboçou qualquer objecção.
Mas o mais importante é que, ao contrário do que a generalidade dos agentes da polícia indiciam no seu comportamento e do que provavelmente a maioria das pessoas pensa, a polícia não pode exigir a identificação 'porque sim'. Tem de haver uma justificação para tal, que está caracterizada no decreto-lei nº 59/93 de 3 de Março. A saber:
1 - Os agentes das forças ou serviços de segurança a que se refere a Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, no artigo 14.º, n.º 2, alíneas a), c), d) e e), podem exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre a mesma pessoa existam fundadas suspeitas da prática de crimes contra a vida e integridade das pessoas, a paz e a humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado ou tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual penda processo de extradição ou de expulsão.
2 - Os mesmos agentes só podem exigir a identificação depois de exibirem prova da sua qualidade e de terem comunicado ao identificando os seus direitos e, de forma objectiva, as circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação e os vários meios por que se pode identificar.
3 - A omissão do dever de comunicação a que se refere o número anterior determina a nulidade da ordem de identificação."
Ora, como se pode inferir desta leitura, é no mínimo duvidoso que um agente policial possa exigir identificação a alguém por estar a fotografá-lo no desempenho das suas funções: que crime será suspeito de cometer? Mas, talvez ainda mais interessante, os órgãos de polícia que permitem a exigência de identificação, e que estão identificados na Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, não incluem a polícia municipal, porque esta não constitui uma força de segurança. Assim, as circunstâncias em que um agente da PM pode impor a identificação de alguém são ainda mais restritas que as acima descritas:
- A identificação e revista de suspeitos, medidas cautelares de polícia previstas no artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 19/2004, podem ser adoptadas pelos órgãos de Polícia Municipal unicamente em situação de flagrante delito;
– Os órgãos de Polícia Municipal podem proceder à revista de segurança no momento da detenção de suspeitos de crime punível com pena de prisão, em caso de flagrante delito, desde que existam razões para crer que as pessoas visadas ocultam armas ou outros objectos com os quais possam praticar actos de violência – artigos 251.º, n.º 1, alínea b), e 174.º, n.º 5, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP);
– Os agentes de polícia municipal podem exigir a identificação dos infractores quando necessário ao exercício das suas funções de fiscalização ou para a elaboração de autos para que são competentes (artigos 14.º, n.º 2, da Lei n.º 19/2004, e 49.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
Cumpre ainda, porque o agente da PM em causa disse que se eu não me identificasse me conduziria à esquadra, lembrar que:
-- Os agentes das polícias municipais somente podem deter suspeitos no caso de crime público ou semi-público punível com pena de prisão, em flagrante delito, cabendo-lhes proceder à elaboração do respectivo auto de notícia e detenção e à entrega do detido, de imediato, à autoridade judiciária, ou ao órgão de polícia criminal.
A história acabou em bem, porque o agente desistiu quer de me identificar quer de me levar detida. Mas convinha mesmo refrescarem, nas polícias portuguesas, o conhecimento da lei. É que teria a maior piada que um polícia uniformizado e por lei obrigatoriamente identificado com o nome em local bem visível violasse o direito de uma cidadã ao anonimato (imagine-se, tenho esse direito) e a levasse detida, lesando outros seus direitos fundamentais, por esta o identificar, numa foto, no cumprimento público das suas funções.
39 anos depois do 25 de Abril, já vai sendo altura que as polícias portuguesas aprendam a funcionar de acordo com a legalidade democrática, e percebam que a identificação de cidadãos não é uma forma de os chatearem e ameaçarem, mas um acto que, como todas as outras acções policiais, se deve reger pelos princípios da adequação e proporcionalidade. É no mínimo irónico que tenham de ser os cidadãos a explicar aos agentes policiais o que a lei diz e a impedi-los de a violar.
Fernanda Câncio, em 11.02.13

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