"Sou dos que acreditaram que a criação de sindicatos nas polícias,
mormente nas forças de segurança, iria contribuir para a sua democratização,
para a sua modernização, enfim, para a criação de uma cultura de respeito pela
dignidade da pessoa humana e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Sempre acreditei que as liberdades cívicas só existem verdadeiramente nas
sociedades onde esteja garantida a segurança de pessoas e bens - a segurança de
todos os cidadãos, independentemente do sexo, da raça, do credo político,
ideológico ou religioso, da condição social, cultural ou económica, da língua,
da nacionalidade e da orientação sexual. Como jornalista e como cidadão,
acompanhei e apoiei, desde o seu início, o processo de criação dos sindicatos
na PSP, no Corpo da Guarda Prisional e na Polícia Judiciária. Lembro-me bem dos
primeiros passos desses processos dados no início dos anos oitenta pelos
pioneiros do sindicalismo nas polícias: o comissário Santinhos, da PSP (e as
sessões quase clandestinas em alguns restaurantes de Coimbra), o inspetor
Roseiro Vicente, da Polícia Judiciária e Bento Vieira, da Guarda Prisional.
Desde muito novo tive a esperança de que a constituição de sindicatos
nas forças de segurança iria abri-las à sociedade e à cidadania e, simultaneamente,
abrir a própria sociedade às forças de segurança, fazendo com que estas e cada
um dos seus membros passassem a ser olhados com respeito e com confiança pelos
cidadãos em geral, e não com medo e desconfiança. Lembro-me muito bem de como
na minha aldeia, nos finais dos anos cinquenta, todos, adultos e crianças,
fugíamos quando alguém anunciava a vinda da Guarda, uma patrulha de dois
soldados da GNR (um de cada lado da estrada) que fazia dezenas de quilómetros a
pé apenas para se mostrarem e incutirem medo às pessoas.
Hoje, tudo está mudado e, em muitos casos, para pior. E, infelizmente,
as forças de segurança não conquistaram o respeito e a confiança dos cidadãos.
Durante o dia, os nossos polícias amontoam-se nas esquadras ou então andam nas
ruas a exibir-se com arrogância, armados até aos dentes, mais parecendo
personagens de filmes de ficção do que agentes de segurança de uma sociedade
democrática.
Porém, à noite fogem quase todos, para suas casas, deixando as ruas das
nossas vilas e cidades abandonadas aos criminosos. E, pior do que tudo isso, em
muitas situações de contacto com suspeitos de crimes as polícias atiram logo a
matar com uma leviandade chocante para qualquer consciência minimamente
humanista. Em cerca de dez anos, as duas principais forças de segurança - PSP e
GNR - já mataram quase quatro dezenas de pessoas, a esmagadora maioria das
quais em circunstâncias em que não se justificava o uso de armas de fogo,
enquanto em outras ficaram muitas dúvidas sobre essa necessidade. A maioria das
mortes ocorreu em situações em que não estava em causa a segurança dos
polícias, mas sim quando os suspeitos eram perseguidos. Um miúdo de 14 anos foi
morto durante uma perseguição policial, em condições que, segundo testemunhas,
mais se aparentam com uma execução a sangue-frio do que com um ato de legítima
defesa. Pessoas que não pararam em operações stop foram simplesmente abatidas
pela Polícia.
As forças de segurança matam pessoas e imediatamente a seguir aparecem
na comunicação social os sindicalistas respetivos a distorcer a verdade dos
factos, nomeadamente, eliminando os aspetos incriminadores e realçando ou mesmo
inventando circunstâncias atenuantes. Os sindicatos têm servido, sobretudo,
para promover a impunidade de quem deveria ser sancionado, para misturar os
bons com os maus numa argamassa corporativa que acentua o desprestígio e o
sentimento de desproteção da comunidade, bem como para insultar publicamente
quem denuncia essas degenerescências.
É preciso que os polícias se convençam de que ninguém se pode sentir
verdadeiramente seguro numa sociedade onde as forças de segurança matam com
tanta facilidade e com tanta impunidade. É urgente que todos, incluindo os
polícias dignos desse nome, se mobilizem para combater a cultura de pistoleiro
que tem vindo a disseminar-se no interior das forças de segurança em Portugal."
No "JN" de hoje
No "JN" de hoje
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