Era assim conhecido até que as modernices relegaram estes lugares para
o esquecimento. De lugar passou a Travessa da Bouça e Rua da Bouça - não os sei
distinguir - para mim e maioria das pessoas de Freamunde é sempre o lugar da
Bouça. Hoje quando me pedem uma informação e dizem o nome da rua, pergunto qual
a finalidade, para me saber situar e informar com precisão, pois por nome de
ruas ainda não me habituei, claro está, a não ser a do Comércio mas esta é tão
antiga como os lugares.
No lugar da Bouça foi onde passei a minha meninice, juventude e
adolescência. Nasci no lugar da Gandarela depois, rumei até S. Mamede de
Negrelos e passados dois anos vim novamente para Freamunde. O não ouvir o sino
da nossa terra é no que dá e os meus pais não eram diferentes.
Assim vim parar ao lugar da Bouça no ano de 1953 mais precisamente no
mês de Junho. Sei que era este mês pelo motivo de na nossa chegada, - passamos
a viver numa espécie de “ilha” - na entrada haver uma cascata de louvor aos
santos populares. Nunca mais me saiu da ideia pelo facto de sem querer ou por
traquinice estragar parte da cascata que os filhos do senhor Sousa da
“Tipografia” tinham construído e que a partir daí e por algum tempo mais, -
foram viver para o lugar da Feira - tive a antipatia deles.
Nesse lugar, dos mais pobres de Freamunde, viviam poucas pessoas quase
que se contavam pelos dedos das mãos e a maioria eram idosas. A senhora Rosário
e Gracinda eram irmãs mas entre elas eram tão opostas: a primeira má, não
suportava crianças, a segunda, uma jóia de pessoa. Não compreendo como as duas
se suportavam. Numa casa, sua pertença, morava o senhor Arnaldo Alves, pai do
“Barrigana” tinha uma tamancaria, ali passava algum bocado de tempo a ver a
confecção dos tamancos. Pegado a estas, era a casa e terrenos do senhor José
Silva, pai do Domingos “Teles”, tanto dele como da esposa, guardo as melhores
recordações, algumas vezes matei ali a “fome” ou “lambarice”.
Na minha rua (ilha) morava o Juca “Careca” recordo os pombos de papo
que ele tinha e que alguns vinham comer às suas mãos as migalhas de pão que ele
ali depositava, a sua esposa Marília, pela vida fora uma segunda mãe para mim;
o António “Coroa” que passado pouco tempo foi viver para Angola, a senhora
Marquinhas, viúva do pai do senhor Manuel da “Bouça” casado em segundas
núpcias.
Estas casas pertenciam á família Brito, donos da drogaria que havia na
rua do Comércio, com o mesmo nome de família e confrontava com a casa e
terrenos do referido Manuel da “Bouça”. Aliás, estes terrenos em tempo pertenceram
à família do Manuel da “Bouça”, com as partilhas e as necessidades foram
vendidas à família Brito. Quantos tanques de água ali “tirei”! Explico: No
tempo de calor as plantas precisavam de serem regadas e nos terrenos do Manuel
da “Bouça” havia um poço com uma bomba para tirar água. A bomba estava
apetrechada para tirar água maquinalmente, não havia luz eléctrica, assim tinha
de recorrer a quem a tirasse ou ser ele ou a esposa a dar-se a esse trabalho ou
pagar o esforço braçal. Ganhava 2$50 por cada tanque de água e este comportava
em quase duas pipas. De manhã cedo tirava um tanque e depois da hora laboral -
trabalhava na fábrica “Grande” - tirava outro o que perfazia 5$00, com este
serviço extra auferia mais dinheiro que a trabalhar na dita fábrica - era dado
a minha mãe para minorar as dificuldades, às vezes, ajudava-me porque os meus
braços eram tenros e o esforço grande.
Mais abaixo morava a senhora Angélica - mãe do Toninho da “Angélica”.
Tinha mais filhos mas falo deste porque foi o primeiro oleiro que conheci.
Trabalhava na olaria do Vitorino Ferreira. Tinha mãos de magia. Estas produziam
artigos de sonho que eu admirava na minha tenra idade. Morreu novo. Com a
doença da época: tuberculose. Mais abaixo morava a família “Repenica”, não sei
se ainda fazia parte do lugar da Bouça.
O senhor António da “Luzia”, sempre de “Sobretudo pelas costas” e de
carabina nas mãos, naquele tempo a sua casa era num lugar ermo, casado em
segundas núpcias com a senhora da” Bouça”, - era assim tratada pela maioria das
pessoas, tinha uns terrenos de cultivo, e um caseiro que os cultivava. Às vezes
ia para ali ver o seu cultivo: o deitar estrume para adubar o terreno, os bois
a puxar o arado para este sulcar a terra, o mondar o milho. Tudo isto ainda
permanece na minha memória. Passado pouco tempo de eu ali viver, faleceu. Ainda
me recordo do seu funeral ser acompanhado por inúmeras pessoas e eu sentado em
cima dum muro a ver a sua passagem. Julgo que foi no ano de 1954. Assim, com a
sua morte, o lugar da Bouça passou a ter menos um habitante e um idoso.
Mais retirado mas ainda no lugar da Bouça moravam a senhora Rosalina
“Bicha” mãe do Quim “Bicha” falava sempre do outro filho que tinha ido para o
Brasil, as saudades eram tantas que a isso a levava, - este (Quim
"Bicha") não tinha sido uma perfeição de filho - nunca mais o viu. A
senhora Maria da “Poça” sua inquilina, solteirona, estas senhoras vieram a ser
contempladas com a solidariedade dos vizinhos tanto na alimentação como no
anseio das suas pessoas e casas. Não tinham ninguém de família para as ajudar.
Julgo que nesse tempo havia mais solidariedade.
Como disse o lugar da Bouça era pobre e isolado mas rico na convivência
entre moradores. Não havia luz eléctrica nas casas e via pública. As noites de
Inverno eram escuras como breu. Não havia nas imediações cafés e Freamunde
nesse tempo era servido pelos dois cafés Teles, um para ricos outro para pobres
e pelo café Popular do Américo “Caixa”. Uns anos mais tarde foi uma
proliferação de cafés. Hoje há mais cafés que lugares em Freamunde. A Televisão
também passou a ser uma realidade em Portugal e em Freamunde os cafés passaram
a adquirir esse aparelho para fazer frente ao progresso porque a partir daí os
programas da rádio iam passar a ser preteridos.
Era jovem mas já um pouco curioso. Os programas de televisão, nesse
tempo, começavam ao início da noite. Para os ver - só aos sábados - tinha que
pedir autorização aos meus pais e ter a benevolência do empregado do café,
julgo que era o Maximino “Candeeiro”, no Café Popular. Delirava com todos os
programas. Para mim uma maravilha e não compreendia como uma caixa rectangular
podia mostrar pessoas a falar e mover-se.
O Mundo estava em revolução no que tocava a tecnologia. Havia o cinema
mas este era projectado por uma máquina para o pano (ecrã). Como era possível
ser apresentado numa caixa rectangular e dar programas em directo.
Aproximávamos do ano dois mil e como era corrente dizer o… fim do mundo. Só
podia ser isso. Russos e Americanos estavam a destruí-lo. O que queriam mostrar
era as suas invenções. Parece que estavam fartos da vida.
Nesse entretanto o que eu queria ver era os programas que davam na televisão:
Rin-tin-tin, Daniel Boone, Bonanza e vários outros. Gostava de todos mas o mais
admirado por mim era o Bonanza. O rancho de Ponderosa de Ben Cartwright e de
seus filhos, Adam, Hoss e Joe.
As horas passavam e animado com tal programação não me lembrava que
tinha o retorno para casa. Depois de sair do café Popular e ver como a noite
estava escura é que vinha a minha preocupação: sozinho e com um trajecto feio.
Tinha na altura uns onze anos. Era ainda uma criança.
Tinha duas opções. Pelo lugar do Calvário ou pelos lugares de Gaia,
Boavista e subir a costeira da Bouça. Ambos de difícil acesso. Pelo segundo
apanhava parte do trajecto com luz pública mas a costeira da Bouça metia medo e
tinha fraca fama. A primeira não tinha luz pública era também um trajecto feio
principalmente a partir do lugar do Calvário. Tinha um cruzamento onde
depositavam defumadouros, para quem não sabe, uns bruxedos feito por bruxos e
que tinham de ser deixados em cruzamentos para dar o efeito desejado pelos seus
clientes. O medo já era tanto que nem olhava para trás. Meu pai dizia quando
visse esses defumadouros que não era bom olhar para trás, nunca soube qual o
motivo, também não olhava com medo de me aparecer a fada, meio mulher meio
cavalo.
Uma coisa sabia que tinha de fazer: a deslocação para casa. Quem me
dera a família Cartwright a fazer-me companhia. O tempo que gastei para ver
aquele episódio podia ser compensado com a sua companhia. Prazer era pago com
prazer. Eu com o episódio e com a sua companhia para me guardar o medo. Eles
iam conhecer o lugar da Bouça. Mas quem queria conhecer tal lugar. Ermo e de
idosos.
Com o progresso e as novas vias de comunicação o lugar da Bouça está
totalmente modificado. Os terrenos, antes de cultivo, hoje abandonados,
passaram a ser vendidos para a construção civil. Nas bouças, que intermediavam
o lugar da Bouça, foi ali construída a Escola EB 2 3 Dr. Manuel Pinto
Vasconcelos, pai dos doutores Fernando e José Carlos de Vasconcelos. Hoje
parece outro lugar ou como lhe chamam travessa e rua da Bouça. A via pública
toda iluminada, as suas bouças desapareceram o que já não amedronta ninguém.
Deixei de ali morar no ano de mil novecentos e setenta e cinco. Tenho
sete irmãos que nasceram ali e o meu pai ali viveu quarenta e dois e a minha
mãe quarenta e quatro anos. Dali foram para a sua última morada que não é muito
longe. O cemitério nº. 2, de Freamunde, confina com o lugar da Bouça e
Talhô.
Do lugar da Bouça guardo boas recordações. Devido a ser pobre e isolado
e ter como lema do lugar em que nasci, - Gandarela - a minha vida tem sido
pautada por isso mesmo e reza assim: quem nasceu na Gandarela, por força tem de
chorar, o que o destino lhe reserva, é morrer a trabalhar.
Não possuo fotografias do lugar da Bouça para aqui as exibir.
Sem comentários:
Enviar um comentário