Não, não vamos para melhor, nem os amanhãs cantam, nem o futuro é risonho. Mas talvez a grande verdade seja que também não o merecemos.
Há muito tempo que não leio um livro que me encha as medidas e todavia nunca li tanto na vida como neste ano que chega ao fim. Faz-me falta ler um grande livro porque a literatura liberta, leva-nos para territórios alheios, infinitos de deambulações e ausências, de personagens excessivas, atormentados por sentimentos diferentes deste torpor malsão em que sobrevivemos, como a de Justine em “Quarteto de Alexandria”, de Durrell, quando exclama: “Se ao menos houvesse qualquer coisa de infinitamente livre, de polinésico, nesta devassidão em que vivemos!”
De há muito que fui perdendo o interesse pela política portuguesa — que foi durante décadas, e ainda é, uma parte determinante da minha actividade profissional. Não é um distanciamento diletante e, menos ainda, cívico, mas apenas um reflexo do desinteresse crescente com que sigo o que vai acontecendo: os debates, os congressos, os comícios, as eleições e as campanhas eleitorais, as agendas e programas políticos, os eleitos e os eleitores, os governantes e os governados. O poder e o povo. E depois, por cima de tudo isso, o absoluto alheamento e ignorância que todos — o poder, o povo e a imprensa — votam ao que se passa no mundo. Nós, os descendentes de outros portugueses cuja curiosidade pelo desconhecido, cuja coragem de fazer os mapas por descobrir, os levaram à sete partidas do mundo, estamos hoje remetidos à curiosidade das notícias sempre mais importantes do burgo e às conversas de taberna das redes sociais, por onde desfila toda a mesquinhez e inveja de que a raça humana é capaz. Num dia abrimos os telejornais com a notícia do novo treinador do Sporting, no outro dia chamam-lhe “génio” porque ele mudou o “sistema” e ganhou um jogo ao Benfica, e às jogadoras da Selecção de Futebol feminina chamam-lhes “Navegadoras”, como se alguma vez tivessem empunhado um sextante ou enfrentado uma borrasca atlântica à vela. Diz-me quais são as tuas notícias, dir-te-ei o teu estado de literacia; diz-me quem são os teus heróis, dir-te-ei de que massa é feita a tua gente. E se me disseres que muitos dos teus melhores estão fora ou estão voluntariamente afastados do governo da cidade, por invejas, por intrigas, por maledicência, por guerras de capelinhas, dir-te-ei que futuro te espera.
Um grande livro tem a extraordinária faculdade de nos mentir, fazendo-nos sonhar e levando-nos para longe de horizontes fechados. Não me admira que os portugueses não leiam: o real, este real a que acedem, serve-lhes perfeitamente como plataforma de intervenção. Uma das mais trágicas consequências desta cultura das redes sociais é a transformação de cada um dos seus viciados num herói aos seus próprios olhos, um sábio e um justiceiro, alguém que não precisa de aprender, nem de ver, nem de ouvir, nem de ser confrontado com outras verdades. Alguém que julga saber tudo e, tudo sabendo, nem sequer precisa de sonhar. Nem o real o desafia, nem o sonho o acorda: apenas a ilusão em que vive o transporta. Um dos mais tristes exercícios a que a política nos obriga a assistir é a via-sacra de humilhação a que os políticos são obrigados a expor-se perante o bom povo, jurando sempre que entendem as razões deste e que prometem fazer diferente dos outros. Porque o povo apenas quer o bem e os políticos querem sempre o mal, tão simples quanto isto. Eu sei que hoje esta é uma regra planetária: o extermínio democrático das elites foi preenchido pela ética fria do algoritmo e as ideologias são conversas de salão. Talvez a única excepção sejam paradoxalmente os Estados Unidos, onde um homem que é a verdadeira essência do mal transformou em ideologia de sucesso um apelo aos instintos mais baixos do bom povo, conseguindo irmanar na mesma cruzada bestial ricos e pobres, pretos e brancos, cultos e ignorantes.
Mas vemos como aqui, este povo que tantas vezes, até recentemente, teve de sobreviver exportando os seus filhos que não conseguia sustentar para Alemanhas, Franças, Luxemburgos, Américas, Venezuelas, hoje, estimulado pelo algoritmo do mal e os seus vampiros, começa a ensaiar o caminho do repúdio dos imigrantes que cá chegam. Temos 1 milhão deles cá e 2 milhões dos nossos lá fora, mas isso não são contas que lhes interessem. Como não o são a contribuição dos que para cá vieram para a natalidade, para a Segurança Social, para a sustentação de sectores como a construção civil, a hotelaria e restauração, os lares dos velhos. Um povo que se habituou a viver de ajudas externas e de dívida pública, cuja produtividade a trabalhar está na cauda da Europa, dá-se ao luxo de torcer o nariz aos desgraçados que vêm para aqui fazer o trabalho que os portugueses não querem fazer, vivendo em condições em que nenhum português gostaria de viver e enfrentando condições laborais que nenhum sindicato aceitaria para os nossos. Dizem que não gostam dos asiáticos porque não têm a nossa religião, como se isto fosse a Arábia Saudita. Ou porque não comem a nossa comida, como se fôssemos judeus ortodoxos. Ou porque não falam a nossa língua, como se fosse fácil para nós falar a deles. Mas quando um deles atravessa a cidade de motoreta ou a pedalar de bicicleta, ao frio ou ao calor, para nos trazer a casa um sushi ou um pato à Pequim, o que nos interessa a língua que falam ou o cozido à portuguesa? E quantos dos nossos avós emigraram sem saber uma palavra de francês ou de alemão e por lá se quedaram gerações até que os seus filhos fossem franceses ou alemães? Onde estão os políticos que se atrevem a dizer isto ao bom povo português, em lugar de irem atrás das “percepções” das redes socais e os tratarem como suspeitos de crimes que não comentem ou como turistas de saúde, eles que se arruínam para comprar uma passagem do outro lado do mundo para poderem vir trabalhar para aqui?
Eu sei que este é o mundo que trouxemos para 2025. Mas porque assim é, torna-se ainda mais importante olhar para ele e tentar percebê-lo, sem ir atrás acriticamente. Se somos pequenos, que sejamos, não digo grandes, mas menos pequenos, pelo exemplo. Será que precisamos mesmo de comprar uma catrefada de aviões de combate F35 e gastar 3% do PIB em defesa para nos prepararmos para as guerras para as quais a NATO, os Estados Unidos e a sra. Von der Leyen nos querem arrastar? Será que temos de partilhar o silêncio e a conivência vergonhosa com o terrorismo de Estado de Israel e continuar a apregoar a defesa dos direitos humanos como matriz diplomática? Temos de acompanhar a histeria anti-imigração quando esse não é o nosso problema? E cá dentro, temos de continuar a fugir de dizer aos preciosos eleitores as verdades que entram pelos olhos adentro: que temos de premiar o mérito, o trabalho, a iniciativa, a criatividade, a criação de riqueza, e deixar de acarinhar quem só reivindica e não produz, a especulação e a batota?
Às vezes dou comigo a pensar que não seria assim tão difícil governar bem Portugal, se fosse possível dizer a verdade toda e depois agir em consequência. Porque o que há a fazer é fácil de perceber. É claro que seria preciso enfrentar uma tenaz resistência dos parasitas instalados no sistema e dos demagogos que os alimentam. E seria preciso, antes disso, ganhar eleições dizendo a verdade, o que seria quase impossível. E, como tal, estamos fadados a ser, como disse Ramalho Eanes Presidente, “um país eternamente adiado”. E não foi por falta de oportunidades, nem de avisos, nem de sustos, ou de lições que deveríamos ter aprendido. E o que desgasta e desilude ao acompanhar de fora a política portuguesa é ver como, ciclo após ciclo, eleição após eleição, os males são sempre os mesmos e os actores, embora mudando, nada mudam na essência: uns prometem o que não pode ser cumprido, outros esperam sempre maiores ganhos com menos esforço. Avanços, chamam-lhe.
Não, não vamos para melhor, nem os amanhãs cantam, nem o futuro é risonho. Mas talvez a grande verdade seja que também não o merecemos. "
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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