(Viriato Soromenho Marques, in Diário de Notícias, 02/11/2024)
O desfecho das eleições nos EUA não irá alterar a colisão das nações do Atlântico Norte com a dureza do destino esculpido pelos seus próprios erros. Em 30 anos, Washington protagonizou todos os pesadelos que as suas maiores figuras históricas consideravam fundamental evitar. Contra os autores de O Federalista (1788) – um dos 10 livros obrigatórios de filosofia política do Ocidente -, a categoria republicana da representação parlamentar, que deveria ser preenchida por um escol, eleito na base da honra e do intelecto, está hoje entregue a gente que faz do Congresso um lugar onde as leis são compradas e vendidas (John Rawls dixit).
Contra F. D. Roosevelt (presidente entre 1933 e 1945), voz infatigável a favor da justiça económica e social como escudo contra o risco de fascismo (que ele temia em caso de regresso à concentração capitalista anterior ao crash de 1929), hoje, nos EUA campeia uma plutocracia obscena que tudo controla, desde a comunicação social ao sistema político, incluindo as eleições (veja-se como Kamala e Trump se encostam ao apoio dos bilionários).
Contra o duplo perigo, denunciado por Eisenhower na sua despedida presidencial em 1961, a saber, o do “pilhar” (plundering) da natureza capaz de ameaçar as gerações futuras, e o de deixar a defesa entregue a uma sinistra teia de interesses sem controlo democrático, o famoso “complexo-militar-industrial”, o presente mostra-nos os EUA como um persistente obstáculo à cooperação internacional no combate à crise global do ambiente e clima, do mesmo modo que o seu negócio das armas transformou a diplomacia e a política externa na continuação da guerra por outros meios.
Os EUA embarcaram, sem aparente retorno, na demencial desmesura de um poder, autocentrado, que se julga absoluto. Nem Kamala, nem Trump entendem o derradeiro apelo de Roosevelt aos norte-americanos, no dealbar de 1945, quando insistia na ideia de que todos deveriam aprender a ser “cidadãos do mundo” (e não seus donos…), ou a proposta de J.F. Kennedy em 1962, aos países europeus, para uma “Declaração de Interdependência”, que se alargaria à própria União Soviética, quando se tratou de impedir a aniquilação nuclear.
O que une quem manda nos EUA e na UE é um desespero crepuscular, da sua inteira responsabilidade. Para travar o inevitável, sacrificam-se vidas e valores.
É indecente falar no Ocidente em direitos humanos, quando a desigualdade doméstica resvala na pobreza, e se alimenta o genocídio e a agressão perpetrados por Israel. Quando a nossa identidade se define pela fabricação e punição de “inimigos”, e não pelo poder inclusivo de um projeto de futuro, já entrámos no reino das sombras.
Do blogue Estátua de Sal
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