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domingo, 27 de outubro de 2024

A ÍNDIA E A CHNA À MARGEM DA CONFERÊNCIA DOS BRICS:

Um artigo do jornalista António Caeiro, correspondente da Lusa durante longos anos em Pequim, «China — Índia, a hora do degelo», refere o “pormenor” de, pela primeira vez em cinco anos, os líderes da China e da Índia se terem encontrado e que esse encontro ocorreu em Kazan, na Rússia, enterrando o machado de guerra que ensombrava as relações entre os dois países mais populosos do planeta.

Demarcando-se da “ordem internacional” liderada pelos Estados Unidos, os líderes das duas maiores economias emergentes do mundo enfatizaram o seu empenho na “construção de um mundo multipolar”. O encontro, realizado à margem da cimeira anual dos BRICS, ocorreu dois dias depois de os dois governos terem anunciado um acordo sobre o patrulhamento do vale Galwan, uma disputada região dos Himalaias que em junho de 2020 foi palco de violentos confrontos entre tropas chinesas e indianas. Morreram pelo menos 24 soldados, no mais grave incidente do género em décadas. A China e a Índia partilham uma fronteira com cerca de 3.500 quilómetros de extensão, desenhada pelas antigas potências coloniais. Embora haja ainda divergências quanto ao seu traçado, Xi e Modi comprometeram-se a “promover a comunicação e a cooperação”.
Apesar do “gelo” instaurado depois de 2020, o comercio bilateral continuou a crescer, ultrapassando os 110 mil milhões de dólares o ano passado. A China é o maior parceiro comercial da Índia. O atual “degelo” veio mostrar que a Índia pretende desempenhar o seu papel na construção de um mundo multipolar que substitua a hegemonia dos Estados Unidos.
Para a China, a Rússia e a Índia, a ordem mundial estabelecida no final da II GM chegou ao fim em todos campos. No campo militar, quer a China, quer a Rússia, quer Índia são potências nucleares e potências aeroespaciais, podem vigiar todo o planeta, atacar e defenderem-se. dispõem de esquadras com porta-aviões e submarinos com capacidade de lançamento de armas nucleares, têm mares “próprios”, onde são dominantes, ou pretendem ser, o Pacífico para a China e o Índico para a Índia, onde os americanos são intrusos, dominam a alta tecnologia, têm mão de obra qualificada e de mercados internos.
O que estes estados estão a dizer ao mundo é que não aceitam a hegemonia dos Estados Unidos em termos militares, nem económicos e muito menos financeiros. Mais do que potências desafiantes afirmam-se como potências soberanas nos seus espaços, que agem em pé de igualdade com os Estados Unidos.
O Acordo de Bretton Woods, 1944, refletiu a hegemonia dos Estados Unidos no pós-guerra quando podiam vincular o dólar ao ouro, que historicamente representava o dinheiro internacional. O Acordo funcionou até ao final dos anos 60, com as sucessivas crises do dólar, mas restaram as entidades internacionais de apoio, fiscalização e supervisão económica e financeira, como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e o BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento); como instrumentos de domínio dos Estados Unidos.
Em termos financeiros, o que está em construção é uma arquitetura financeira mundial alternativa ao dólar e ao FED, a reserva federal americana, e a criação de instrumentos de controlo independentes dos Estados Unidos. O que limitará a capacidade dos Estados Unidos financiarem o seu deficit orçamental emitindo papel moeda. Uma questão vital para os EUA.
Em termos estratégicos, o que parece já ser claro é que a China e a Índia vão assumir o papel de potências dominantes nos seus oceanos, parte do Pacífico para a China e o Índico para a Índia, onde os Estados Unidos terão cada vez menos liberdade de ação.
Para os Estados Unidos é deixado o Atlântico e o Mediterrâneo. Vistas da China e da Índia as guerras da Ucrânia e do Médio Oriente são “empenhamentos virtuosos dos Estados Unidos”, isto porque os obrigam a colossais gastos para sustentar a Ucrânia e Israel, que se traduzirão a curto ou médio prazo numa grave crise económica e social no Ocidente Global.
A Rússia, a China e a Índia vêm a intervenção dos EUA no Médio Oriente como um novo Vietname e essa é para elas uma situação vantajosa, como já foi o conflito na Indochina. Quanto à guerra da Ucrânia, este é para a China e para a Índia um conflito menor, que está dentro das capacidades de resolução da Rússia e teve e tem a vantagem de lhes permitir comprar petróleo, gás e matérias primas à Rússia a preços muito convenientes para a sua indústria. Também teve a vantagem de fazer desaparecer a União Europeia enquanto ator autónomo na política mundial. Para eles a Europa é hoje um apêndice dos EUA.
Apesar destas evidências, os americanos e os europeus ainda olham para o mundo como se fossem o seu centro. Não são. Há vários centros e estão a tomar as decisões de acordo com os seus interesses. Estamos no fim da era colonial e o Ocidente devia integrar-se na nova era.
Carlos Matos Gomes

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