Rádio Freamunde

https://radiofreamunde.pt/

quarta-feira, 10 de julho de 2024

«UMA PROCURADORA RESPONSÁVEL POR COISA NENHUMA»:

«Uma investigação que envolve um primeiro-ministro não pode ser tratada como qualquer outra. E é esse aspeto fundamental que o MP finge não perceber, escolhendo embarcar na onda populista.»
Já conhecíamos a resposta evasiva dada há meses pela procuradora-geral da República, Lucília Gago, após a demissão de António Costa. “Não me sinto responsável por coisa nenhuma”, afirmou na altura. Depois da entrevista à RTP, fica claro que a afirmação é para levar a sério — a procuradora-geral da República não é responsável por coisa nenhuma, o Ministério Público é autónomo e, ficamos a saber, não comete erros, nem deve pedidos de desculpas. No fundo, é uma entidade não escrutinável, que paira acima de todos os poderes. Se dúvidas existissem, dissiparam-se: estamos perante uma instituição que, enquanto se considera imbuída de uma missão salvífica, corrói os alicerces da nossa democracia. E, pelo caminho, de uma sociedade decente.
Poucas investigações denotam isto de forma tão exata como a que envolveu o anterior primeiro-ministro, António Costa. Não por se tratar daquele primeiro-ministro em concreto, mas pelas implicações que decorrem de se tratar com ligeireza um caso com este alcance institucional. A entrevista de Lucília Gago confirmou que não foi por acaso, é mesmo doutrina profunda do Ministério Público.
Por várias vezes, a procuradora afirmou que somos todos iguais perante a lei. O óbvio em democracia. Mas como também deveria ser óbvio, se todos podem ser investigados (o que implica também o primeiro-ministro ou o Presidente da República), uma investigação que envolve um primeiro-ministro não pode ser tratada como qualquer outra. E é esse aspeto fundamental que o Ministério Público finge não perceber, escolhendo embarcar na onda populista.
Poderia preencher esta página com exemplos de absurdos kafkianos em que se viram enredados cidadãos anónimos às mãos do Ministério Público. Nem sequer é esse o ponto. Por muito sofrimento e aleatoriedade que envolvam, o impacto desses casos é privado e circunscrito à vida de cada uma das pessoas, ou seja, não provoca “alarido” (palavras de Lucília Gago). O mesmo não é verdade quando está em causa um chefe de Estado ou de Governo, investigações que, por definição, têm impacto público. A afirmação reiterada de que não há estatutos especiais está, por isso, entre o insensato e o delirante e é, aliás, contraditória com o que a própria procuradora-geral diz ter feito.
Fui procurar ao site da PGR e não dei conta de que o cidadão anónimo, igual perante a lei e que é investigado, tivesse direito a um comunicado especial, “concebido” pela própria procuradora (para recuperar o curioso verbo escolhido), nem tão-pouco se compreende, então, o motivo pelo qual a procuradora faz “um acompanhamento de proximidade de alguns processos”. Isto acontece porque não são processos iguais a outros e porque, pela sua sensibilidade, deveriam implicar cuidados redobrados, desde logo, na robustez da prova.
A questão não é António Costa, é a proteção institucional da figura de um primeiro-ministro de Portugal. O tema é tanto mais sério considerando a imprudência com que reiteradamente atua o MP – com inquéritos abertos com ligeireza para não mais serem encerrados; recurso desproporcionado a escutas, que são utilizadas por arrasto e depois cirurgicamente libertadas para a comunicação social; culminando no pouco cuidado dedicado à produção de prova.
Para o Ministério Público, estamos de facto todos sob suspeita e, potencialmente, paira sobre nós o espectro da investigação eterna – para mais, se tivermos desempenhado cargos públicos. Entretanto, quem quer que tenha praticado um ilícito assiste com regozijo e sempre mais confortável. Se todos podem ser condenados na praça pública com tamanha leviandade, os verdadeiros culpados ganham a melhor das proteções. A dos pingos da chuva.
por Pedro Adão e Silva (no Público de 10/Julho/2024)
(O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico) 

Sem comentários:

Enviar um comentário