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domingo, 28 de julho de 2024

PÚTIN E O PENSAMENTO ÚNICO:

Vi uma reportagem de um canal de televisão americano passada recentemente na SIC e intitulada “Como Putin enganou cinco Presidentes americanos”.

Era um tipo de trabalho jornalístico-político clássico da TV americana — parte-se de uma tese que se quer “provar” e vai-se procurar cuidadosamente “testemunhos” que a demonstrem: o secretário de Estado Antony Blinken, antigos embaixadores americanos na ONU, na NATO ou em Moscovo, jornalistas da estação.
Depois, monta-se tudo com imagens de arquivo dos encontros bilaterais entre Putin e os Presidentes americanos, tendo o cuidado de selecio­nar imagens do Presidente russo onde surge com ar de raposa prestes a saltar sobre a presa.
Sucessivamente, é-nos relatado que Clinton não teve tempo suficiente para formar uma opinião do russo, George W. Bush foi completamente enganado depois de “o ter olhado nos olhos” e ter acreditado nele, Obama não ligou ao assunto Rússia, Trump quis ser enganado e só Biden, finalmente, não se deixou enganar, a não ser no início.
Mas em que é que eles todos se deixaram enganar é a pergunta que um espectador atento fará, pois que nem a pergunta e menos ainda a resposta passam ao longo dos 40 minutos do programa. OK, Putin enganou-os a todos, diz o título. Mas sobre o quê? Acerca de quê? Como não só não existia nenhum contraditório nem ninguém se deu ao trabalho de fazer um relato daquilo que esteve em cima da mesa ao longo de 20 anos de relações bilaterais entre os Estados Unidos e a Rússia, fui forçado a concluir que se tratava de um exercício jornalístico para convertidos ou iniciados ao credo: todos eles estavam carregados de boas intenções, enquanto o russo só queria enganá-los.
Até que, quase a terminar o programa, uma das “testemunhas”, uma ex-embaixadora na NATO, se descaiu e finalmente revelou onde esteve o longo “engano”: “Convencemo-nos de que ele queria ocidentalizar a Rússia, mas afinal não queria.”
Afinal, Putin não queria ocidentalizar a Rússia… Enganou-os, enganou-nos! Não, não enganou. Há 10 anos, Putin fez um discurso de estratégia onde defendia que o futuro da Rússia estava a leste, da Sibéria até ao Pacífico: ninguém no Ocidente lhe prestou atenção, mas o discurso representava uma mudança fundamental, e não apenas do ponto de vista económico e histórico, sobre o papel da Rússia num mundo cada vez mais bipolar, entre a China e os EUA.
Antes mesmo de os EUA decretarem também que a sua zona estratégica de interesses se passava a concentrar na região da Ásia-Pacífico, já Vladimir Putin estava a olhar para lá: a Ucrânia foi um acidente de percurso, que ele, forçado ou não, avaliou mal.
Mas não era para o Ocidente que ele estava a olhar, ao contrário de Pedro o Grande, com quem tantas vezes é comparado. Há dois anos, também, ele fez outro discurso, uma espécie de manifesto anti-Ocidente, onde acusava os Estados Unidos e os seus aliados de quererem impor os seus valores morais e políticos ao mundo inteiro, como se o mundo inteiro os reconhecesse como os únicos legítimos e adequados aos seus povos.
Putin é um conhecedor da História russa, um dado fundamental que escapa grosseiramente aos seus adversários no Ocidente, ao ponto de terem anunciado que ele seria apeado pelo povo decorridos poucos meses de guerra e de “privações”.
Putin sabe que a democracia e as liberdades, tal como as conhecemos no Ocidente, são coisas alheias aos russos: não lhes fazem falta. Não obstante o heroísmo de resistentes como Navalny, o poder autocrático de Putin não é uma forma de governo estranha aos russos. Ele aprendeu com Dugin, o seu ideólogo (cuja filha os serviços secretos ucranianos mataram num atentado que visava o pai), que, desde tempos imemoriais, há três coisas em que assenta o poder na Rússia: a noção de pátria, a religião e o autocrata.
Durante a monarquia, a noção de pátria estava na “Mãe Rússia”, o território sagrado pelo qual cada russo daria a vida contra as ameaças dos inimigos; a religião era a Santa Igreja Ortodoxa; e o autocrata era o Czar, investido de poder divino.
A partir de 1917, com a Revolução e a paz de Brest-Litovsk, Lenine cedeu território em troca de ganhar os soldados massacrados do Czar para a Revolução, substituiu a religião da Igreja pela do comunismo e a autocracia do Imperador pela do Partido.
Após o desmantelamento da URSS, um irresponsável Boris Ieltsin, totalmente na mão dos americanos e dos piores capitalistas ocidentais, foi levado a acreditar na versão maligna da democracia ocidental: a confusão entre a liberdade e a libertinagem, o salve-se quem puder.
No seu livro “Os Homens de Putin”, a ex-correspondente do “Financial Times” em Moscovo Catherine Belton descreve pormenorizadamente como é que Vladimir Putin conquistou o poder e aos poucos foi substituindo a máfia e os oligarcas de Ieltsin pelos seus. Embora o livro seja um violento libelo anti-Putin, lido com atenção, percebe-se, mesmo contra a vontade da sua autora, que o que ele fez, no essencial, foi pôr fim ao saque das empresas estatais e estratégicas russas, que Ieltsin tinha entregue a estrangeiros a preços de saldo, e recuperou-as para a esfera do governo.
A diferença entre os seus oligarcas e os do seu antecessor é que os seus passaram a ser controlados a partir do Kremlin e não do Texas. Depois, daí em diante, foi uma cascata: ele passou a “enganá-los” a todos. Ao contrário do esperado, não se deixou “ocidentalizar”.
A repressão do terrorismo tchetcheno (que é suspeito de ter fomentado secretamente) ajudou-o a ganhar tranquilamente as segundas eleições e a consolidar o poder como novo senhor de “Todas as Rússias”, a antiga designação imperial. Como autocrata apoia­do pela Igreja e ex-agente do KGB, sempre que necessário, Putin lança mão de métodos desagradáveis para se livrar dos seus adversários internos: envenena-os ou fá-los “suicidarem-se” saltando do alto de prédios para a rua. Nada de muito estranho num país onde dantes os czares se livravam dos inimigos empalando-os e deixando-os a agonizar pendurados de fora dos muros do Kremlin. A barbárie dos russos e dos eslavos, em geral, é lendária.
Todavia, a história das décadas da Guerra Fria está carregada de episódios semelhantes do nosso lado, uns conhecidos, outros não, e dificilmente se poderá sustentar que, em matéria de métodos de actuação, de invasões, de golpes de Estado, de massacres, de Guantánamos, nós fomos predominantemente os bons e eles os maus.
A História é uma lavandaria onde todos entram sujos e só sai limpo o último a fechar a porta. Isso não impediu que, para bem da Humanidade, vivêssemos em paz durante mais de 70 anos, mesmo sob a ameaça permanente de milhares de ogivas nucleares capazes de fazerem cessar de vez todas as divergências. Claro que, para quem teve a sorte de nascer e ser educado com os valores daquilo a que chamamos “democracias liberais”, só por masoquismo experimental ou obstinação ideológica trocaríamos o nosso modo de vida pelo do país de Vladimir Putin.
E, se pudéssemos, decretaríamos o mesmo, a liberdade, para todos os povos e nações do mundo. A liberdade e também a prosperidade. E também a paz — também a paz. Mas, como tal não é possível, nós, os campeões das democracias liberais e dos direitos humanos, hoje execramos Putin e perseguimos qualquer russo, de atleta olímpico a compositor, mas convivemos com ditadores e assassinos conhecidos como tal de África, do Médio Oriente, da Ásia ou da América Latina e até com alguns peculiares “democratas” europeus.
Por isso, por ser menos hipócrita e guardar ainda memória de uma guerra mundial, é que, até que a URSS se desmoronasse de podre, uma sábia geração de dirigentes ocidentais de outro calibre, que nada tem que ver com os desta geração rasca que agora nos governa, soube esperar pacientemente e durante décadas que a razão se impusesse por si, preservando a todo o custo os ténues fios de diálogo que, contra todos os riscos, mantiveram a paz possível.
Mas, de então para cá, o Ocidente manteve viva a mentalidade da Guerra Fria. Não conseguiu deixar de ver a actual Rússia como uma continuação da extinta União Soviética. Não conseguiu perceber que a URSS comunista nada tinha que ver com a Rússia profunda, enquanto a Rússia de Putin é a restauração daquilo que, para o bem e para o mal, para a grandeza e para a desgraça, a Rússia foi ao longo dos séculos.
E, sobretudo, não conhecendo essa História nem entendendo essa Rússia, o Ocidente insiste em avaliá-la e julgá-la por padrões éticos e políticos em que os russos não se reconhecem e que em nada contribuem para o entendimento comum. Acicatado pelos países bálticos ou pela Polónia, que têm justas razões para temer o abraço do “urso”, doutrinado por intelectuais de pensamento único como Fukuyama, Timothy Garton Ash ou o exibicionista francês Bernard-Henri Lévy, refém da doutrina NATO de não perder esta oportunidade de derrotar a Rússia a qualquer preço, o Ocidente conseguiu — com a ajuda da imponderação de Putin, é certo — fazer deste um tempo ainda mais perigoso do que o da Guerra Fria.
E, porque nada entendem além das regras de pensamento que estabeleceram, nada percebem agora do que se passa na Rússia com a revolta interna do Grupo Wagner. Mas, se tivessem estudado a História, saberiam que muitos czares recorreram também a guardas pretorianas por desconfiarem do Exército regular, que conduziram guerras com elas para evitarem a mobilização popular e que alguns acabaram assassinados por elas.
Chega a ser confrangedor ver os 27 da UE, comandados por esse patético Josep Borrell, paralisados na ignorância e na angústia, qual grupo de papagaios amestrados à espera de instruções superiores. Que seguramente virão dos generais americanos — apesar de tudo, os que melhor conseguirão perceber o que se vai passar numas Forças Armadas que cobrem 11 fusos horários de território continental e um espaço aeronaval que vai do Pacífico ao Árctico, passando pelo Mediterrâneo, o Índico, o Atlântico e o Báltico, com o maior número de ogivas nucleares de um Estado.
Ao pé disso, a escolha do chamado Mecanismo Europeu de Apoio à Paz de continuar o business as usual, apostando tudo na guerra (cabendo a Portugal contribuir com 170 milhões de euros para ajudar a comprar armas e munições para a Ucrânia), numa guerra na Europa que se espera possa durar até 2027, é certamente uma decisão visionária."
Miguel Sousa Tavares in Expresso

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