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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Paris e o “Festim dos deuses”. Dois milénios, uma revolução iluminista e o conceito de blasfémia ainda existe no Ocidente:


(Pintura de van Biljert, Séc. XVII)

Caros cristãos ofendidos: sabe-se que o cristianismo ocupou o espaço e a hierarquia do império romano e constrangeu, quiçá aliviou, as almas que nele habitavam durante séculos (sem acabar com a maldade, pelo contrário, intensificando-a por vezes por acção directa dos seus agentes). A onda foi de tal maneira que, quase dois milénios volvidos, ainda subsistem fortes resquícios do domínio da sua doutrina em boa parte do mundo (o império romano atravessou mais tarde os oceanos). A imponência das basílicas e catedrais ajudou porque deslumbram e impõem respeito.

Mas outras filosofias e imaginários já existiam. Não somos apenas, como europeus, herdeiros do cristianismo, by the way, fundamentado em filosofias como o zoroastrismo, oriundo da Pérsia, noutras correntes vindas da Suméria, trazidas para o próximo Oriente, somos também herdeiros da filosofia grega, não indiferente às outras, assim como de representações artísticas bem terrenas e carnais e das autênticas divinas comédias e tragédias que a mitologia grega e os seus criadores nos proporcionaram.  Digo “criadores” e todos o reconhecemos agora tranquilamente como termo correcto. Estranho é a morte dos “nossos” deuses ser difícil de aceitar.

Sei também que a religião, por desígnio, formata e condiciona as mentes dos indivíduos (por definição frágeis) pelo simples facto de lhes incutir narrativas e rituais desde muito cedo, na infância. No caso do cristianismo, narrativas violentas, trágicas e assustadoras, de infernos em chamas e um deus tirano e insensível, capaz de exigir a Abraão o sacrifício do filho Isaac como prova de obediência, coexistem com outras de extrema bondade e amor ao próximo personificadas na figura de um homem que é o filho do tal deus prepotente, mas uma bondade que não dispensa o sentimento de culpa permanente por uma morte redentora. Enfim, que neurónios não se retorcem com tamanhos conflitos e incongruências? Que tempo precioso não se perdeu a estudar, deslindar, justificar estas narrativas e simbolismos? E para quê?

Como facilmente se constata, nada de bom ou de mau neste mundo acontece pela intervenção ou a vontade de qualquer divindade. Pessoas boas morrem a caminho de locais de culto, aqui, em Meca, em todo o lado. Outras a combater em nome da mesma divindade que se marimba para o esforço. Mas talvez eu esteja equivocada e a vida não seja importante. Nesse caso, o que será? A morte?

A verdade é que, quando se morre não se volta, e também, quando se morre, a Terra cá continua, verdinha ou sequinha, habitada ou não habitada, indiferente a divindades, cá continua e continuará, bem como o sol (pelo menos por mais uns milhões de anos, dizem), todos os planetas e estrelas, as galáxias e todas as agitadas partículas e fenómenos do universo, universos mesmo, que vão sendo descobertos. O que isto significa não sabemos. Como acaba, não sabemos. Como começou, temos apenas algumas luzes. Para já, morreremos sem saber. Não há deus que nos valha. Adorar quem não me deixa ver está fora de questão.

Mas histórias que orientam e condicionam o comportamento humano houve muitas ao longo dos tempos. Levá-las à letra é sintoma de alienação mental irreversível, tendo chegado a inventar-se a palavra “fé” para a crença em seres que se sabe não existirem e nas suas acções impossíveis. Ilustradores de algumas dessas histórias também sempre houve. Quantas obras de arte não representaram Zeus e os seus humores e caprichos, Apolo, Poseidon, Atena, Cronos ou Hefesto, ou mortais como Sísifo e Salmoneu ou Perséfone. Histórias que punham os deuses a interagir com os humanos. Ou seja, a descer à Terra, a andar pelo seu submundo inclusive. Era fatal que assim fosse. A importância desses seres derivava justamente das incógnitas e dos medos, sendo os humanos constrangidos a criá-los. O cristianismo não fugiu à regra, embora a montagem inclua menos actores e preveja um deus único, à semelhança da já referida filosofia persa.

Mas chega de prédica e de sermão aos peixes. O Da Vinci pintou “A Última Ceia” e o que fez foi ilustrar uma das muitas histórias inventadas da Bíblia, existindo praticamente zero provas da existência real daqueles personagens chamados apóstolos e da sua convivência com um tal Jesus Cristo, segundo a mesma história, prestes a sacrificar-se pelos pecados dos homens. Uma história terrível, sem dúvida digna de registo em livro e em tela, assim como de dramatizações várias e de grande impacto. Também van Biljert, um holandês, pintou “O festim dos deuses” no século XVII, representando criaturas mitológicas da antiguidade clássica, de que somos herdeiros também, numa animada festa presidida por Apolo. Foi esta, segundo parece, a inspiração para a brincadeira apresentada na sessão de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. A ser assim, ninguém devia protestar, porque esses deuses já morreram. É isto: deuses nascem e deuses morrem e tal facto, comprovado pela História, devia ser consensual. Mas ai de quem toque nos que ainda não morreram. Se não a fogueira, o espirito de fogueira continua lá, à espera.

Podemos deslumbrar-nos com a longevidade e o poder de união dos pressupostos cristãos e orgulhar-nos das obras de arte que nos legaram e ao mesmo tempo rir-nos de nós próprios e do nosso por vezes lamentável percurso enquanto cristãos? Eu acho que sim. Lineu, que procurou classificar, com algum sucesso e muita fama, todas as espécies de plantas existentes, não ousou admitir, apesar de suspeitar, que nem tudo nascera exatamente como lhe era dado ver naquele momento, porque isso era ir contra a explicação cristã da criação do mundo e, logo, os seus princípios. Ao contrário do francês, George Louis de Buffon, seu contemporâneo e muitos anos director do Jardin du Roi. Hoje facilmente se reconhece que o sueco perdeu tempo e podia ter ido mais longe, não fosse a condicionante da religião. Darwin manteve a sua grande obra sobre a evolução das espécies escondida durante anos com receio de que a sua publicação abalasse os alicerces da santa madre igreja. Como tem vindo a acontecer desde então. Para já não falar do Galileu e do triste fim de Giordano Bruno, julgado e condenado por blasfémia.

Mas muitas pessoas gostam e precisam do sobrenatural, dir-me-ão. Pelo que vejo, e pelos comentários que não vão tardar, tenho a certeza que sim. As igrejas não vão acabar. Podemos brincar com as histórias e os quadros que as ilustram? Totalmente. Até porque eles são irrelevantes para o fenómeno da religião. Narrativas colectivas têm a sua utilidade na criação de comunidades mas são narrativas e em latim até eram melhores, porque ninguém percebia. Trump pode assassinar alguém na 5ª Avenida em frente a uma esquadra da polícia e milhões de pessoas continuarão a votar nele! É isto a irracionalidade. Existe, mas há alguma utilidade em combatê-la. Nem que não seja para ninguém ir parar à fogueira.

 por Penélope

Do blogue Aspirina

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