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quinta-feira, 11 de abril de 2024

DE ONDE LHES VEM ESTA INFINITA ARROGÂNCIA?

Parece que um grupo de pessoas quer defender a família. Dizem que não devemos desvalorizar os seus adversários. Que há quem a queira dissolver. “À luz do dia” ou “de um modo mais subtil e larvar”. Perante estes avisos, quero agradecer a solidariedade, porque sou, sou mesmo, um homem de família. E tento imaginar que a minha (todas as famílias) está incluída na proteção que pretendem promover. Se não está, temos um problema: não estão a defender a família, estão a atacar a dos outros.

A minha mãe viveu com quatro homens, teve filhos de três e só casou com o primeiro. Tenho irmãos do lado do pai e da mãe. Dizem por aí que são “meios” mas sempre me pareceram tão inteiros como os de qualquer pessoa. As irmãs mais novas do meu irmão mais novo são família distante, porque me lembro delas desde que nasceram, já os irmãos dos meus irmãos mais velhos nem por isso, porque mal os conheço. Cresci a achar que tudo isto era “natural”. Tenho uma família unida, as férias eram em “manada” de primos e tios e nunca houve zangas por partilhas.
Cedo descobri que havia outras famílias "naturais", o que só me fez bem. Famílias mais parecidas com os meus avós. Chegado à idade adulta, repeti o padrão. Vivi com pessoas diferentes e tenho na mãe da minha filha uma das minhas melhores amigas. Como cresci a achar tudo natural, nenhuma separação foi o fim do mundo. Gosto do marido dela, que ajudou a educar a minha filha durante quase duas décadas. Também gosto do pai do meu enteado. Para mim, são todos família.
Conheço muitas famílias ainda mais variadas do que as minhas. São cada vez mais habituais as famílias "puzzle", em que se acumulam afetos e até novos parentescos (quantas crianças crescem hoje com um “avôdrasto”?), que se constroem e reconstroem. Não sei bem do que se fala quando se fala de família “natural”. Nas minhas várias famílias há casais de pessoas do mesmo sexo e há quem tenha mudado de género. Também há casais entre pessoas de sexo diferentes que se uniram pela Igreja. Há pessoas conservadoras e liberais, felizes e infelizes ou, como quase todos, umas vezes uma coisa e outras vezes outra. Têm os seus segredos, as suas mentiras, as suas zangas, as suas reconciliações. Uns núcleos são mais estruturados, outros menos. Há pessoas que amo e outras que nem por isso, umas ausentes e outras muito presentes. Tudo como nas famílias que alguns acham ser as únicas no presente e no passado. Apesar de excêntrica para alguns (muito pouco habitual, quando era criança), é uma família como as outras.
Não quero convencer ninguém do meu modelo de família, até porque não o tenho. Calhou-me este e assim fui construindo os meus afetos. Só quero duas coisas simples: humildade e respeito.
Quero que quem julga ter o pronto-a-vestir da família, a “natural” – a sua, obviamente –, deixe a minha em paz. Eles não me dizem como viver, eu não lhes digo como viver. Como habitamos o mesmo país sob a mesma lei, não me tentem impor o seu modelo de felicidade e eu não lhes imponho o meu. Não me calha bem o deles, nunca me pareceu assim tão natural. Não lhes calhará bem o meu, também o acharão estranho. É que podemos, podemos mesmo, viver felizes com leis que os respeitem a eles e a mim. Que lhes garantam direitos a eles e a mim. Não se metem na minha sala e no meu quarto e eu ficarei longe da sala e do quarto deles. Não falam em nome da família, porque a minha não representam. E eu não falo em nome da família deles. Agradeço, mas a minha não precisa de defesa. Quando fica em perigo é cá por coisas nossas.
Agora, que o Estado e a Igreja não podem impor, de forma totalitária, o mesmo modo de vida a todos, atirando para a clandestinidade outras formas de ser feliz, temos de aprender a viver numa sociedade plural, tolerando a vida dos outros. Não é gostar ou concordar. É tolerar. E só se tolera e respeita o que se conhece. Isso implica um acordo que me parece fácil: da mesma forma que o seu modo de vida, o seu modelo de família, não é escondido, como se fosse impróprio, o dos outros também não. Nem o meu, nem o de casais do mesmo sexo, que têm famílias tão respeitáveis como as de nós todos. Não é escondido de adultos ou de crianças, porque nada tem de "escandaloso" e nenhuma criança dessas famílias tem de crescer achando-se menos "natural". É mesmo a única exigência que sinto ter direito a fazer: não haver famílias clandestinas. Aguentam ou a confiança no vosso modo de vida é tão frágil que saber que há outros o põe em risco?
Não me incomoda o que quem foi aplaudir Passos Coelho ache ter o modelo ideal de família. É o seu e em sociedade livres só vive assim quem quer. Incomoda-me a sua totalitária arrogância, que chega ao ponto de querer decidir que familia deve o Estado promover. E, olhando para muitos políticos naquela sala, é curioso ver que são os mesmos que não adoram ver o Estado a garantir serviços de saúde e a escola ou a redistribuir a riqueza a não o dispensar na casa dos outros. São menos incoerentes do que parece. Querem o Estado para proteger o seu modo de vida e os seus privilégios. De classe, de género, de etnia, de orientação sexual, do que for. O que está em causa é sempre o mesmo: poder. A liberdade dos outros assusta-os.
(Daniel Oliveira, no "Expresso")

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