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segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Quim Bica:


JOAQUIM DIAS VEIGA DE MATOS 

30 - 9 - 1925 / 12 - 2 - 2009

Nascido nos subúrbios da Gandarela, filho de João Veiga de Matos, tamanqueiro e instrumentalista da Banda de Freamunde, e de Maria Angélica Dias, cedo comeu o pão que o diabo amassou. "Empurrado" para a luta do dia a dia como aprendiz de marceneiro na fábrica de móveis de António Pereira da Costa, no Calvário.

«Nós éramos nove irmãos e toda a ajuda para o sustento da casa era importante. O «fado» dos pobres! Não cheguei, sequer, a conhecer o meu pai que emigrou para o Brasil em busca de melhor sorte e por lá ficou e morreu».

Quarta classe obtida no ensino nocturno, aos dez anos já carregava madeira, e na madeira "bordaria" talento. O jeito para o desenho transferiu-se para a "banca" da talha.

«Ganhava 8$00 por dia. Uma ninharia. Valorizei-me e o patrão subiu o salário para 16$00 diários. Só estabilizei quando me transferi para uma unidade industrial em Lordelo, onde se praticavam ordenados bem superiores».

A arte nasceu com ele. "Descobriu-a" num dia desesperado, sem dinheiro, já casado com Lucinda de Jesus da Costa Martins, ao tentar fazer uma boneca de madeira para uma das suas "cachopitas". Acordado para as suas esculturas, que mais não eram que autênticos rendilhados (o passo para o desenho aconteceu num instantinho), o "incentivo" deu-se num encontro combinado com o jornalista Viale Moutinho, amigo íntimo do freamundense Idalino Ribeiro. Os órgãos de comunicação social (jornais, revistas, televisão...) passaram a interessar-se pela sua obra.

No mundo da arte "naif", onde mergulhou durante várias décadas, relacionou-se com jornalistas, escritores, pintores...(Vasco Graça Moura, Fernando Alvarenga, Agostinho Silva, Manuel António Pina, Germano Silva...) Gente de todas as categorias e estratos sociais. Realizou a sua primeira exposição no Casino da Póvoa, inaugurada no dia 16 de Novembro de 1974, em plena "liberdade".

«...Parece-me interessante referir como Quim Bica segue os conhecimentos da sociedade em que está inserido. Entre um realismo fantástico enriquecido pela sua pujança técnica e uma imaginação que o leva a servir-se no esboço aproveitado ou criado lugar para um símbolo, o artista revela-se um humanista». Viale Moutinho in catálogo da exposição na Galeria Monumental Casino da Póvoa de Varzim, de 16 a 30 de Novembro de 1974.

Outras se seguiram em catadupa. Em 1976, aquando das comemorações henriquinas, promovidas por editores e livreiros do Porto. Quim Bica surpreendeu ao apresentar um trabalho (dois livros) realizado em pranchas de vidro, com tinta da China, inédito no país. Passados dois anos "apresentava-se" aos conterrâneos no edifício dos Paços do Concelho - hoje Museu do Móvel.

Todo o seu espólio fora inspirado, essencialmente, em temas relacionados com a História de Portugal e a literatura de Camões, Pessoa e Camilo. Porquê o fascínio por estes poetas e romancistas e não outros? «Ah, se calhar é por eu ser também um artista maldito!...» Assim se expressou durante uma conversa com jornalista do DN Revista - Dezembro e 1985. Também fazedor de figuras religiosas e mitológicas, paisagens, lugarejos da Vila...

«No homem autêntico esconde-se uma criança que quer brincar - o aforismo de Nietzsche ocorre-nos como uma possível explicação para a ingenuidade e inocência cativas na obra de Quim Bica». (Froufe Andrade - Jornalista e crítico de arte).

Quim Bica, exemplo de perseverança, homem de trato simples e alegre, bairrista dos sete costados, foi uma figura incontornável da cultura deste burgo, definido por alguns "especialistas" como um dos casos mais sérios da arte popular portuguesa contemporânea.

O "nosso" Joaquim é o único artista concelhio citado no "Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses" (Volume I, 1988), de Fernando Pamplona.

No domínio da escultura e pintura, expôs em variadíssimos concelhos do país. Por exemplo, em 1977 apresentou a série CAMÕES, no âmbito da 17ª Feira do Livro do Porto, tendo ainda participado no IV Salão dos Artistas das Horas Livres, no Pavilhão de Desportos do Porto, na exposição "O Caminho de Ferro" (Museu Nacional Soares dos Reis), bem como na mostra "Os artistas são como as crianças" (Galeria do Jornal de Notícias) e posteriormente apresentada em Braga, Guimarães, Barcelos...Ainda na na Galeria Queen's Market, na Foz do Duro. Nas instalações da Inatel, a convite da mesma instituição. Na Agrival, na 1ª Feira Agro-Industrial de Paços de Ferreira, em Lousada, Paredes e Freamunde, terra que tanto exaltou

Representado, também, em várias colecções particulares, destacando-se a dos escritores José Carlos Vasconcelos, Viale Moutinho, Celestino Portela, Arnaldo Saraiva e Wanda Ramos, bem como do actor Mário Viegas, do jornalista Manuel Rocha, Dr. Fernando Vasconcelos, Prof. Arménio Pereira, da Casa da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto...

A arte de Quim Bica ultrapassou fronteiras, inclusive. Mostrou-se na Alemanha Federal, em 1982, com o apoio da Secretaria de Estado da Emigração, tendo patente na Galeria Municipal de Enadetten uma exposição de pinturas e esculturas. Segundo o jornal "Emsdettener Volkszeltung", o escultor Franz Klopletz, professor de Belas Artes, considerou verdadeiramente notável a qualidade técnica e artística e a pureza dos trabalhos de Bica; nos Países Baixos, em 2004, na exposição que decorreu na Galeria Sidac Studio na cidade de Leiden...

Nas suas obras, sempre se preocupou com detalhes que só ele via. Quim Bic pintou, esculpiu, arquitectou, desenhou, dissecou, "inventou"...Creio, no entanto, que nunca conseguiu talhar verdadeiramente os sonhos.

Noutra área, o talentoso artista popular também revelou qualidades interessantes nos campos da bola, expressando-as através das "amantes" escultura, desenho e pintura, de quem nunca se separou. Considerações, peripécias que me foram relatadas por colegas do seu tempo em evocações de orgulho e nostalgia. ESCULPIU, burlando e torneando o esférico ou adversários com leveza, simplicidade e virtuosismo, referências que sempre o caracterizaram.Contudo, não esculpiu o seu palmarés com os mesmos contornos com que esculpiu a arte "naif". Pouco tempo andou rendido aos encantos do futebol, puramente amador.

DESENHOU lances de fino recorte técnico e, sobretudo, PINTOU a "manta" com a sua irreverência, a sua alegria que a todos contagiava.

Fez parte, em finais da década de quarente, de um grupo divinal formado por talentosa geração de atletas, orientados pelo carismático professor Gil Aires. De frágil compleição física, era um jogador de feitio rebelde e bizarro, com sentido de humor, imenso. A rapaziada jogava mesmo bem. Nenhuma linha atacante se tornou tão lendária como essa máquina de fazer golos. As célebres épocas das "seisadas"

«Outros tempos em que se jogava por amor à camisola! Onde os prémios se resumiam a umas sandes e um copo de vinho. Era uma pobreza franciscana! Só tive "chuteiras" para jogar devido à gentileza do amigo Rogério Monteiro, "menino" que vivia desafogadamente e não necessitava de "material" remendado pelo António "Filipe", sapateiro com aposenta na velha praça. O baptismo na equipa de honra ocorreu no início da época 46/47, juntamente com outras caras novas: João "Cherina", Rogério Monteiro, e Amaro "da Cavada". Sim, sim, o Amaro "da Cavada", avô desse grande jogador chamado Antoine Griezmann!"»

Há presenças que não cansam, Quim Bica, com quem privávamos diariamente nas tertúlias do Café Teles, era uma delas. Habituámo-nos a considerá-lo pelo exemplo da sua vida - o trabalho, a lição, o êxito, no seu significado mais elevadamente humano.

12 de Fevereiro de 2009, a notícia, fria, gelada como a noite desse fatídico dia, chegou: Quim Bica morreu. Era a verdade nua e crua. Perdemos um amigo sincero, alegre, boémio, sempre jovial, e tantas vezes confidente. Um "pedaço de nós".

Quim Bica foi um grande embaixador da nossa terra, Freamunde, que amava como ninguém. A última vez que tivemos a oportunidade de admirar os seus trabalhos, aconteceu em Julho de 2005, durante a semana cultural das Sebastianas, integrada nas II Jornadas de Reflexão e Saudade, evento da responsabilidade da Associação Cultural e Recreativa Pedaços de Nós, de quem era colaborador e associado.

No cortejo fúnebre incorporaram-se dezenas e dezenas de amigos. Várias colectividades fizeram-se representar com os seus estandartes: Sport Clube de Freamunde, Grupo Teatral Freamundense, Associação Cultural e Recreativa Pedaços de Nós.

Quim Bica foi cultor de uma arte que se tornou consanguínea. A Filha, Celeste, e o neto, Mateus, aqui e ali vão expondo os seus trabalhos. Será que a veia genética irá perdurar?

JOAQUIM PINTO - "20 ANOS 20 PEDAÇOS DE NÓS"

Retirado do blogue Freamundense

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