Nunca fui um defensor de Sócrates, mas infelizmente nesta matéria tenho que lhe dar razão.
Mais de 7 anos volvidos, o Conselho Superior da Magistratura reconhece por fim, por insistência do juiz Ivo Rosa, o que sempre tinha negado, que a distribuição do processo Marquês não foi efectuada por sorteio, na presidência de um juiz, não tendo sido feita de modo a garantir a independência na distribuição do processo em obediência ao princípio fundamental do “juiz natural”.
O meu espanto é que os doutos conselheiros do Supremo Tribunal tenham concluído tratar-se a violação de tal princípio de uma mera “irregularidade procedimental”, e tenham ignorado o já amplo tratamento jurisprudencial do nosso Tribunal Constitucional sobre a matéria e, nomeadamente do Acórdão n.º 614/2003 (cujo relator Paulo Mota Pinto, faz parte da actual direcção do PSD de Rui Rio) decisão que representa o ponto alto da nossa jurisprudência constitucional sobre a matéria. Transcrevo para que não restem dúvidas, alguns excertos do douto acórdão:
«O princípio do juiz natural, ou juiz legal, para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da Constituição)». O princípio contém «a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo — em nome da raison d’État — quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, “em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto».
Na sua dimensão positiva, o princípio abrange quer «a determinação do órgão judiciário competente», quer a «definição, seja da formação judiciária interveniente (secção, juízo, etc.), seja dos concretos juízes que a compõem» através do «dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas». As regras que permitem tal determinação, e logo relevantes para aferir o cumprimento das exigências do princípio, não são «apenas regras constantes de diplomas legais, mas também outras regras que servem para determinar essa definição da concreta formação judiciária que julgará um processo — por exemplo, as relativas ao preenchimento de turnos de férias —, mesmo quando não constam da lei e antes de determinações internas aos tribunais (por exemplo, regulamentos ou outro tipo de normas internas)».
Na sua dimensão negativa, entendeu ainda o Acórdão n.º 614/03 que o princípio do juiz natural significa uma proibição do afastamento, num caso individual, das regras gerais e abstratas que «permitem a identificação da concreta formação judiciária que vai apreciar o processo».
Assim, concluir como o fez o Conselho Superior da Magistratura que a atribuição do processo Marquês ao juiz Carlos Alexandre executada manualmente (à revelia da obrigatoriedade do sorteio electrónico dos processos) por uma funcionária judicial, sem a presença de nenhum dos juízes que então integravam o “TICÃO” é uma mera irregularidade procedimental e não a violação do princípio fundamental do “juiz natural”, a mim já não me espanta, porque infelizmente são cada vez mais as decisões judiciais por aí disseminadas que revelam erros grosseiros e crassos que as tornam em decisões arbitrárias assentes em puras ficções jurídicas.
Mas como bem afirma o António Teixeira os juízes são irresponsáveis, por força de um outro princípio constitucional (art.º 216.º/2 – «Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei») e, assim, desresponsabilizados pelas decisões proferidas, por mais absurdas e violadoras dos princípios legais, que nos as apresentem.
Num comentário no blogue Estátua de Sal
Sem comentários:
Enviar um comentário