O José Brás é um homem de caráter e inteireza, que escreve e diz o
que pensa sem rodeios nem falsas amabilidades. A primeira parrte do seu texto
dis respeito ao seu conceito de arte, que partilho. Depois é a apreciação do
romance., que foi publicada na revsia TAP - Livros que voam e fazem voar e que
aqui deixo.
Durante um dia (26.12) li “ANGOCHE”, preso da trama que envolveu
Dionísio, Cândido, Saúl, Casimiro, Jardim, Leila, espiões, militares e
guerreiros conhecidos; assassinos e políticos; gente comum e gente excepcional;
algozes e vítimas.
Como quase toda a gente, também eu tenho, mais ou menos alinhado,
mais ou menos aliviado de dúvidas, o meu conceito sobre arte, ponha-se aqui a
palavra com inicial minúscula ou maiúscula, sobre o que é e o que não é arte,
sobre formas e conteúdos, sobre ânsias e emoções em quem produz e em quem
consome, reproduzindo-se o ciclo, repetido apenas ou recriado, sobre dores e
alegrias, sobre vitórias e derrotas, sobre este “quase” em que o homem tantas
vezes se constrói e desconstrói em direcção a um ideal, seja ele qual for.
E assim sendo, acho eu que…
A arte é sempre um processo enviesado sobre a realidade, às vezes
atravessando-a à vista em voo rasante, navegando guiada pelas grandes e
visíveis referências, e outras, voando alto, orientada por referências que só o
olhar da águia adivinha.
De qualquer maneira, tem de ser sempre um processo de recriação de
tempos e lugares de uma realidade possível, quer seja pela repetição da
realidade real, quer seja pela sua projecção em realidades imaginadas, não apenas
na emoção do alegado artista que a fixou, mas também na possibilidade das
emoções múltiplas que desata nos chamados espectadores, repetindo-se em cada um
de formas e intensidades diferentes e variáveis.
A arte da escrita, não é senão a viagem feita com a ferramenta da
palavra, quer se desenvencilhe na forma de um processo histórico, na crónica de
viagem, no ensaio, no novela ou na poesia, perfurando a frieza rígida do
relato, do retrato falado ou do relatório do acontecimento que salta à vista em
lugares e tempos imutáveis, e subindo mais alto para poder buscar razões no
percurso dos actores, nos passos que deram antes, materiais e tangíveis ou na
intangibilidade das suas consciências, das suas ânsias, das suas almas, que
expliquem o como e o porquê da realidade que viveram de verdade ou na
possibilidade da imaginação da águia.
É quase inútil relembrar aqui que a História são os vencedores que
a escrevem de tão corriqueira que é esta afirmação e assumida que está como
certeza certa.
E ter isso como certo dá-nos a possibilidade da certeza certa.
E ter isso como certo dá-nos a possibilidade de atenuar diferencias
entre os conceitos de história, com inicial maiúscula ou minúscula e tida como
relato científico, e a desusada palavra estória atribuída em tempos à ficção.
Não será difícil, então, assumir a cantada História Oficial como
quase segura coisa de ficção, escrita nas conveniências de Poderes ocasionais
no tempo e nos lugares, a partir de acontecimentos e consequências reais, mas
tão ficção nos gestos, nas vontades, nas ilusões, nas emoções dos seus atores,
e até na possibilidade de outras consequências, como os relatos eventuais
imaginados a partir desses factos e atores reais como projeção da realidade
dita real por ser oficial.
E não é difícil aceitar, assim, como tão real, a ficção construída
a partir da imaginação, como a que nos é relatada e assumimos como história,
porque se não foi assim que aconteceu no real ficcionado, poderia muito bem
tê-lo sido.
Naturalmente que neste novelo, atrever-se alguém a alterar o que é
tido oficialmente como certo, pela via de uma projeção possível, exige muito
trabalho de investigação; grande capacidade criação de gente viva cirandando na
trama da história contada; grande capacidade de transmutação de si próprio na
criação, não apenas do pensamento e dos gestos dos personagens criados, mas,
sobretudo das almas que habitam tal gente e as põe em conflito, nas suas
ambições, nas suas ilusões, nas suas emoções, nos gestos de amor ou de ódio, na
grandeza e generosidade, na pequenez das suas traições.
E é isto que, a meu escasso ver, é a arte grande, neste caso, pela
palavra, gerando gente que nasce e cresce; pensa e sente; que evolui perante o
conflito, e ama e odeia; e mata e salva no caldo em que se contrastam decisões
de contrariar o movimento da história em África contra a vontade dos africanos;
as radicais opiniões dos que pensam e agem no sentido da história, e dos que
pensam e agem no sentido de alguma mudar para que tudo continue como sempre
foi; no submundo de serviços secretos que se conjugam quando parecem contrariar
e se subvertem quando parecem comungar; a banalidade da morte e do assassinato
e o gesto heroico da capacidade humana de dar a mão mesmo que imerso nesse lodo.
“Angoche” tem isso tudo e de forma brilhante. Na estrutura da
novela; na construção dos personagens, na urdidura da trama; nos tempos e
lugares; na palavra e no uso que dela faz Carlos Matos Gomes.
Na minha leitura, claro!
Nada digo sobre a circunstância aqui muito evidente das gentes que aspiravam recriar a Europa naquela larga zona de África e disso fizeram a sua vida e a sua morte, ideia já muito abordada por Carlos Matos Gomes em “A Última Viúva de África”, porque falamos aqui de uma rica imaginação posta ao serviço da arte, e não de um ensaio sobre os últimos estertores de um modo velho de colonialismo europeu na África e das mudanças necessárias para que tudo continuasse a ser como foi durante séculos.
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