Rádio Freamunde

https://radiofreamunde.pt/

domingo, 2 de janeiro de 2022

ANGOCHE. OS FANTASMAS dO IMPÉRIO:

Recebi do meu amigo José Brás um email com a sua apreciação ao romance Angoche. O José Brás, foi i mobilizado para a Guiné e aí fez a guerra colonial entre 1966 e 1968. Regressado, entrou para os quadros da TAP como Comissário de Bordo. Fez teatro e dirigiu grupos de amadores, foi activista associativo e animador cultural. Em 1986 foi galardoado com o Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura, na modalidade de ficção narrativa com o livro " Vindimas no Capim", editado pela Europa América.

O José Brás é um homem de caráter e inteireza, que escreve e diz o que pensa sem rodeios nem falsas amabilidades. A primeira parrte do seu texto dis respeito ao seu conceito de arte, que partilho. Depois é a apreciação do romance., que foi publicada na revsia TAP - Livros que voam e fazem voar e que aqui deixo.

Durante um dia (26.12) li “ANGOCHE”, preso da trama que envolveu Dionísio, Cândido, Saúl, Casimiro, Jardim, Leila, espiões, militares e guerreiros conhecidos; assassinos e políticos; gente comum e gente excepcional; algozes e vítimas.

Como quase toda a gente, também eu tenho, mais ou menos alinhado, mais ou menos aliviado de dúvidas, o meu conceito sobre arte, ponha-se aqui a palavra com inicial minúscula ou maiúscula, sobre o que é e o que não é arte, sobre formas e conteúdos, sobre ânsias e emoções em quem produz e em quem consome, reproduzindo-se o ciclo, repetido apenas ou recriado, sobre dores e alegrias, sobre vitórias e derrotas, sobre este “quase” em que o homem tantas vezes se constrói e desconstrói em direcção a um ideal, seja ele qual for.

E assim sendo, acho eu que…

A arte é sempre um processo enviesado sobre a realidade, às vezes atravessando-a à vista em voo rasante, navegando guiada pelas grandes e visíveis referências, e outras, voando alto, orientada por referências que só o olhar da águia adivinha.

De qualquer maneira, tem de ser sempre um processo de recriação de tempos e lugares de uma realidade possível, quer seja pela repetição da realidade real, quer seja pela sua projecção em realidades imaginadas, não apenas na emoção do alegado artista que a fixou, mas também na possibilidade das emoções múltiplas que desata nos chamados espectadores, repetindo-se em cada um de formas e intensidades diferentes e variáveis.

A arte da escrita, não é senão a viagem feita com a ferramenta da palavra, quer se desenvencilhe na forma de um processo histórico, na crónica de viagem, no ensaio, no novela ou na poesia, perfurando a frieza rígida do relato, do retrato falado ou do relatório do acontecimento que salta à vista em lugares e tempos imutáveis, e subindo mais alto para poder buscar razões no percurso dos actores, nos passos que deram antes, materiais e tangíveis ou na intangibilidade das suas consciências, das suas ânsias, das suas almas, que expliquem o como e o porquê da realidade que viveram de verdade ou na possibilidade da imaginação da águia.

É quase inútil relembrar aqui que a História são os vencedores que a escrevem de tão corriqueira que é esta afirmação e assumida que está como certeza certa.

E ter isso como certo dá-nos a possibilidade da certeza certa.

E ter isso como certo dá-nos a possibilidade de atenuar diferencias entre os conceitos de história, com inicial maiúscula ou minúscula e tida como relato científico, e a desusada palavra estória atribuída em tempos à ficção.

Não será difícil, então, assumir a cantada História Oficial como quase segura coisa de ficção, escrita nas conveniências de Poderes ocasionais no tempo e nos lugares, a partir de acontecimentos e consequências reais, mas tão ficção nos gestos, nas vontades, nas ilusões, nas emoções dos seus atores, e até na possibilidade de outras consequências, como os relatos eventuais imaginados a partir desses factos e atores reais como projeção da realidade dita real por ser oficial.

E não é difícil aceitar, assim, como tão real, a ficção construída a partir da imaginação, como a que nos é relatada e assumimos como história, porque se não foi assim que aconteceu no real ficcionado, poderia muito bem tê-lo sido.

Naturalmente que neste novelo, atrever-se alguém a alterar o que é tido oficialmente como certo, pela via de uma projeção possível, exige muito trabalho de investigação; grande capacidade criação de gente viva cirandando na trama da história contada; grande capacidade de transmutação de si próprio na criação, não apenas do pensamento e dos gestos dos personagens criados, mas, sobretudo das almas que habitam tal gente e as põe em conflito, nas suas ambições, nas suas ilusões, nas suas emoções, nos gestos de amor ou de ódio, na grandeza e generosidade, na pequenez das suas traições.

E é isto que, a meu escasso ver, é a arte grande, neste caso, pela palavra, gerando gente que nasce e cresce; pensa e sente; que evolui perante o conflito, e ama e odeia; e mata e salva no caldo em que se contrastam decisões de contrariar o movimento da história em África contra a vontade dos africanos; as radicais opiniões dos que pensam e agem no sentido da história, e dos que pensam e agem no sentido de alguma mudar para que tudo continue como sempre foi; no submundo de serviços secretos que se conjugam quando parecem contrariar e se subvertem quando parecem comungar; a banalidade da morte e do assassinato e o gesto heroico da capacidade humana de dar a mão mesmo que imerso nesse lodo.

“Angoche” tem isso tudo e de forma brilhante. Na estrutura da novela; na construção dos personagens, na urdidura da trama; nos tempos e lugares; na palavra e no uso que dela faz Carlos Matos Gomes.

Na minha leitura, claro!

Nada digo sobre a circunstância aqui muito evidente das gentes que aspiravam recriar a Europa naquela larga zona de África e disso fizeram a sua vida e a sua morte, ideia já muito abordada por Carlos Matos Gomes em “A Última Viúva de África”, porque falamos aqui de uma rica imaginação posta ao serviço da arte, e não de um ensaio sobre os últimos estertores de um modo velho de colonialismo europeu na África e das mudanças necessárias para que tudo continuasse a ser como foi durante séculos.

Carlos Vale Ferraz

Sem comentários:

Enviar um comentário