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terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A água também se planta:

 

A minha costela alentejana adora pão. E adora até o pão que ainda pão não é. Em tempo de ceifa, num hábito partilhado por muitos, costumava colher espigas ainda por ceifar, esfarelá-las com as mãos, separar os grãos de trigo da casca e comê-los assim mesmo, crus. Uma maravilha! Em casa dos meus tios, no Alentejo, em dia de cozer pão, não perdia a fase de amassar e tender, para “roubar” bocados de massa antes de ir ao forno, cruazinha da Silva, com os quais me empanturrava gostosamente. Em Lisboa, quando, em criança, chegava das aulas para almoçar, ia à cozinha e enchia a barriga de massa crua em pacote, fosse em esparguete, em ‘estrelinhas’, em ‘letras’ ou o que calhasse estar no armário. Quando vinha o almoço propriamente dito, tinha muitas vezes a minha mãe a chatear-me a cabeça, com toda a razão, pois a pança cheia de massa não deixava espaço para mais nada e queixava-me de que não tinha fome.Quando, tanto quanto me lembro no princípio dos anos 80, a macrobiótica teve uma difusão explosiva em Portugal, a costela alentejana não podia deixar de me atrair para uma alimentação cuja base são os cereais integrais. Havia inúmeros restaurantes de macrobiótica em Lisboa, de que hoje quase nada sobra, e um dia descobri um em Cascais. Chamava-se Ignoramus e tinha sido “inventado” por dois irmãos, o João e o Carlos, putos de vinte e poucos anos “retornados” de Angola (Lobito). As aspas justificam-se pelo facto de serem ambos nados e criados lá, pelo que, quando vieram para cá, não retornaram a nada, antes chegaram a uma terra que lhes era estranha, vítimas colaterais de sacanices colonialistas com as quais, do que deles conheci, não tinham nada a ver. Eram tipos curiosos, ao ponto de o interesse pela macrobiótica lhes ter surgido, inimaginavelmente, ainda em Angola, onde já a praticavam. Empreendedores natos, criaram o restaurante Ignoramus e mais tarde começaram também a fabricar e comercializar vários tipos de produtos ligados à chamada “alimentação natural”. A marca Ignoramus ainda existe, mas já não é deles. Venderam-na e reformaram-se. Entretanto, a macrobiótica a sério foi desaparecendo e hoje quase nada resta (não me falem em Celeiro). Pratico-a ainda parcialmente, instintivamente, mas sectarismo nunca foi a minha praia, seja em que departamento for, e gostar de macrobiótica não implica qualquer contencioso com uma bela duma piza com tudo ou quase tudo, um ainda mais belo robalo grelhado, umas belíssimas bejecas com tremoços, uma caixa inteirinha de gelados de chocolate ‘Intense Dark’ de uma só vez ou uma cintilante mousse do mesmo manjar de perdição.

Tanta conversa para dizer o quê? Eu ospilico. A macrobiótica esteve, nos seus primeiros passos em Portugal, muito ligada a malta com preocupações ambientais, ecológicas, nomeadamente a chamada agricultura biológica, sem utilização de químicos. Tal como agora, vivia eu e trabalhava nessa época em Lisboa, mas a fome de mar ‘obrigava-me’ a tirar o passe de comboio e a fugir para Cascais, Raso e Guincho quase todas as duas folgas semanais. Por vezes levava a bicicleta no comboio e chegava a ir até ao cabo da Roca. No Ignoramus, onde comia quase sempre nessas duas folgas, tinha-se criado uma espécie de tertúlia, dinamizada pelos dois irmãos, onde as referidas preocupações ambientais, a agricultura biológica e alternativas prá frentex de todo o tipo eram entusiasticamente discutidas. O nome Ignoramus não podia ser mais adequado, pois o enorme entusiasmo e boa vontade eram decididamente insuficientes para colmatar a igualmente enorme ignorância em que chapinhávamos e nos entusiasmávamos. Mas éramos pioneiros, caraças! Ainda a Greta não andava sequer a saltitar, em projecto de gente, de um tomate para o outro do paizinho!

Nessa tertúlia participava por vezes um ricaço de Cascais que curara algumas maleitas de que padecia com a saudável alimentação macrobiótica que mamava no Ignoramus, o que o levara a comungar de algum do nosso entusiasmo. Esse ricaço tinha propriedades em vários pontos do concelho, nomeadamente um terreno de um ou dois hectares, coberto de mato, na Quinta da Marinha. Ouvindo as nossas entusiásticas e ignorantes discussões sobre agricultura biológica, propôs-nos um dia a utilização experimental desse terreno na experiência que melhor nos aprouvesse. E assim foi. Devorámos muito do que na época havia de literatura sobre o assunto e, atendendo às características do terreno, decidimo-nos por um método. Chamava-se Método Pain e fora criado por um tal Monsieur Pain não sei das quantas, ou não sei das quantas Pain, um franciú que vivia numa zona montanhosa e agreste de França, onde os ventos fortes secavam rapidamente a humidade resultante da pouca chuva que caía, tornando os terrenos áridos e pouco propícios à agricultura. Perdi horas, dias e semanas a traduzir e dactilografar o livrinho de Monsieur Pain e distribuímos cópias pelos agricultores de aviário que éramos todos. Uma das minhas tristezas é não fazer a menor ideia de onde pára a minha cópia e, da última vez que falei com o João e o Carlos, também eles não sabiam das suas.

O Método Pain consistia em aproveitar e triturar mato rasteiro, característico da zona para a qual foi pensado, e espalhar o produto triturado pelo terreno a cultivar. Essa cobertura, na qual se faziam uns buraquinhos para permitir o crescimento das plantinhas, protegia os solos da agressão dos ventos, protegia as plantinhas na sua fase inicial, mais frágil, e, simultaneamente, dificultava a evaporação, mantendo uma preciosa humidade necessária ao seu crescimento. Vejo hoje, em canteiros de plantas de jardins públicos, uma cobertura de aparas de casca de pinheiro que julgo terá exactamente o mesmo objectivo.

O nosso problema de agricultores de aviário (um de muitos) era que, no aviário inteiro, havia apenas um que tinha carro e outro uma motorizada. Os restantes, eu incluído, limitavam-se a dar corda aos sapatos, durante mais de uma hora, sempre que era altura de tratar do latifúndio. Adquirimos enxadas e outras ferramentas e, durante dias, demos cabo do mato todo, que juntámos em três ou quatro pilhas enormes. Primeiro problema: como triturar e esfanicar aquela merda toda? Ninguém fazia a mínima ideia. Haveria certamente máquinas para isso, mas não as tínhamos, nem dinheiro para as comprar. O que fazer?, como questionaria o saudoso burocrata Vladimir Ilitch Ulianov. Desenrascanço tuga: mandámos o Método Pain às urtigas, comprámos umas dúzias de castanhas e umas garrafas de jeropiga, juntámos o aviário todo, agricultores e agricultoras, à volta de uma das pilhas de mato, pegámos-lhe fogo e, quando a pilha era quase só brasas, começámos a deitar para lá as castanhas. Óptima ideia? Nem por isso. Ao fim de alguns minutos, vimo-nos subitamente sob fogo cerrado, projécteis rasavam-nos a cabeça e cada um fugia para seu lado. Era a vingança… das castanhas! Sim, meus e minhas, porque não era apenas como agricultores que éramos de aviário. Como assadores de castanhas éramos ainda piores e não sabíamos que, antes de as pôr ao lume, era preciso fazer-lhes um corte na casca. Sem corte, o ar entre a casca e a parte comestível aquece e dilata. Na ausência de corte, e não tendo o ar dilatado por onde fugir, a castanha transforma-se em granada e explode. Mas aprendemos rapidamente e só se desperdiçou a primeira dúzia. Depois, foi só encher a barriga, de castanhas e jeropiga.

Dias depois, começámos a sachar o terreno, fizemos uns regos bué de estilosos e, para início da aventura, decidimos semear ervilhas. Alguns dias de cu para o ar e, depois de esperarmos algum tempo que as chuvas fizessem o seu trabalho, uma greve! Não das chuvas, mas das ervilhas. Em talvez meio hectare de ervilhas semeadas, nasceu UMA! UMA ÚNICA ERVILHEIRA, companheiros e companheiras! Ainda arranjámos coragem para tentar um canteiro de nabos, coisa pequena, um quadrado com cinco metros de lado, aproximadamente. Escusado será dizer que os únicos nabos viáveis continuámos a ser nós. No material de apoio consultado (no aviário até havia um ‘Borda d’Água’) tínhamos ‘aprendido’, julgávamos nós, as alturas adequadas para a sementeira e para a monda. Calhou-me a mim esta segunda e abençoada tarefa. Lembro-me de lá ter ido a cavalo na motorizada emprestada do meu companheiro privilegiado, com um sachito e uma ferramenta pequena de que não lembro o nome na mochila. Lá chegado, os olhos e a alma deliciaram-se com os 25 m2 resplandecentes, vibrantes de vida e de verdura! O problema? Olhei para aquela merda toda e, por mais que virasse o cu para o ar, por mais voltas que desse à cabeça e revirasse os olhos, não consegui perceber que parte da luxuriante folhagem era rama de nabos, a preservar, e qual pertencia a ervas daninhas, a eliminar. Portantes, foi esse o tiro de misericórdia na nossa aventura agricultosa. Metemos o rabo entre as pernas e continuámos a fazer aquilo que todos sabíamos fazer bem: comer a comidinha cultivada e produzida por quem sabe.

Joaquim Camacho

  1. Num comentário no blogue Aspirina B

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