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sexta-feira, 10 de julho de 2020

"SEBASTIANAS" - CAPÍTULO I:

INTRODUÇÃO

Cada um é para o que nasce, diz a voz da sabedoria popular.
Porque não toco guitarra - e tanto gostaria!... -, não sei desenhar, sequer esculpir, sou um pouco prisioneiro das palavras. Escrevo umas coisitas, à minha maneira, e assim me conformo.
Parte do que passarei a publicar sobre as "Sebastianas" é baseado na obra de investigação desenvolvida ao longo de vários anos, na qual dou corpo a um metódico trabalho de pesquisa, socorrendo-me de vários tipos de fontes, sobretudo o  uso da memória, colectiva e individual (cimento das comunidades), que tende a esfumar-se na voragem do tempo; dos entusiásticos relatos da fé e da festa desenvolvidos por bairristas de tempos idos; inventário do património, ou seja, fotografias, recortes de jornais, revistas, programas oficiais; cadernos com apontamentos diarísticos que andavam por casa, autênticos "tesouros", guardados em baús, armários  ou arrumadinhos num canto com o apoio da família, especialmente do meu pai (como "herdeiro", procurei sempre aproveitar, explorar esse filão riquíssimo dos seus pertences. Aliás, sou um pouco daqueles a quem custa desfazer-se do que quer que seja), que perpetuam a história e vão, tenho a certeza, encantar as novas gerações; a indispensável ajuda dos colaboradores dos orgãos de comunicação social, locais e regionais, no que toca à romaria e sua divulgação junto da população... 
Encaixadas as peças como um "puzzle", segue-se o enquadramento da festa no contexto da evolução da comunidade, analisando as várias faces da mesma e a transformação ao longo dos tempos.



PRIMÓRDIOS

Hoje "Sebastianas", outrora "Festas do Mártir" ou "Festas da Vila", da sua origem pouco se sabe.
O Professor Manuel Vieira Dinis, numa das rubricas "História e Etnografia", publicadas na "Gazeta de Paços de Ferreira", faz menção a um dos mais enraizados cultos, S. Sebastião, adorado desde meados do século XIV.



«...É quase certo não haver paróquia concelhia em cuja matriz não figure uma imagem do martírio aplicado ao cristianíssimo S. Sebastião, advogado da "fome, peste e guerra". Sempre que os males rondavam e caíam sobre os povos, atingindo, por vezes, o gado e as culturas, a veneranda imagem cruzava então a freguesia em diligência piedosa.
Saía de seus lares o povo, penitenciando-se, com hinários e ladainhas, pregações e procissões de negro. Verdadeiros clamores dirigidos ao Céu, de profundo desespero.
Guiões coloridos, cruzes, andores com orago e imagens da maior devoção. De cada casa um representante; o bom conselho popular interpunha-se de aviso: - Quem em vida faltou a algum clamor de obrigação, teria de fazê-lo depois de morto.
Velhos manuscritos registam cercos a que não faltavam tocadores de viola e os respectivos foliões bailando na frente.



Quando a caminhada era longa o povo prevenia-se com farnel e boa pinga.
As procissões ao S. Sebastião, aí por meados do século XVIII, não deixavam de ter características especiais. Davam-se morteiros ao levantar do mastro, véspera e dia, armava-se a capela com damascos; havia também tambores, clarins e trompas, além da missa cantada, sermão e de tarde procissão.
Faziam-se "comezainas em hum Monte, pousavam-se indecentíssimamente os Andores no chão, enquanto se comia, e estalavam rizadas e galhofas; saía-se muito bêbado".
É claro que estes e outros aspectos de irreverência mereceram medidas proibitivas por parte das autoridades eclesiásticas». 
As romarias e as festas populares, aquelas onde encontramos as mais expressivas vivências de religiosidade - conforme descreveu Carlos Ferreira de Almeida em "Alto Minho" -, centravam-se sistematicamente em santuários, capelas ou ermidas e  não em igrejas paroquiais onde, aqui, o controlo era mais intenso e não eram possíveis tão grandes liberdades de festa, de ritos e de lúdico, até, por vezes, de erotismo.
Por outro lado, as capelas e os santuários, isolados, prestavam-se muito melhor que as paroquiais às vivências do romeiro.
As festas ao Mártir, em Freamunde, tiveram sempre - tanto quanto sabemos - como epicentro na sua vertente religiosa, a igreja matriz.




Anteriormente à construção da mesma, o culto seria praticado numa velha capelinha que, dizem alguns historiadores, teria existido em honra do Santo Sebastião e derrubada para posterior edificação da capela de S. Francisco, em meados do século XVIII.


Capela de S. Francisco

Socorrendo-nos de vários elementos de pesquisa, constatámos que depois de algumas hesitações ao longo da primeira metade do século XIX a festa ao Santíssimo libertou-se de certos preconceitos para concentrar a anterior vivência em comunhão com o profano.
A invocação ao Santo deixou de ser uma realidade intrinsecamente ligada à vida religiosa.
Nem os documentos nem a tradição fixam no calendário a data exacta em que houve início à festa ao Mártir por excelência, com as características, com o aparato, que hoje se lhe conhecem.
Porém, há indícios que a "Regeneração" e consequente entrada na segunda metade do século XIX foi um voltar de página nas festividades a S. Sebastião.
A festa ao Mártir não correspondia, nem corresponde, à data litúrgica (A Igreja dedica a S. Sebastião o dia 20 de Janeiro de cada ano).
O facto destes festejos se efectuarem, em Freamunde (orago: Salvador), fora do dia atribuído ao Santo Mártir deve-se, tudo leva a crer, ao facto do Verão ser a época do ano mais propícia a... romarias.
Há um século, aproximadamente, eram também habituais os festejos a S. Sebastião noutras freguesias do concelho: Sanfins (orago: S. Pedro de Fins), Modelos (orago: S. Tiago), Arreigada (orago: S. Pedro), Carvalhosa (orago: S. Tiago) e Meixomil (orago: Salvador).
Este tipo de realizações eram, e continuam a ser, sem dúvida, testemunhos da cultura de um povo e inequívocas manifestações populares.
Havia mesmo uma certa tendência para consagrar uma por freguesia, como festa religiosa local.
Porém, nesta povoação, em décadas não muito distantes, e porque há documentação precisa que nos permite afirmá-lo,  chegaram a realizar-se, no decorrer do mesmo ano, treze(!) festejos, todos de carácter religioso com o profano à mistura.
É interessante, pois, apontar a grande propensão do freamundense para este tipo de eventos.
Dar a conhecê-los é prestar homenagem às suas origens sociais e culturais.
Freamunde, Terra, fez sempre das Festas ao Mártir o seu "ex-libris".
Sem data regular, só em 1 de Abril de 1906, numa sessão ordinária da Junta da Paróquia, Henrique de Vasconcelos foi portador de uma proposta, assinada por vários requerentes da freguesia, já apreciada em 19 de Novembro de 1905, sendo definitivamente aceite, como dia certo e determinado, o segundo Domingo do mês de Julho.


A ROMARIA E SEUS ASPECTOS

A romaria era da responsabilidade quase em exclusivo dos comissionados ou festeiros, gente da classe média alta, que, face às precárias condições de vida do "povo", estrato social iletrado e menos considerado, arcavam com o custo e o esforço no cumprimento dos contratos.


A "elite" freamundense


Numa época de grande conflitualidade (primeira década do século XX), o poder político pouco ou nada manipulou directamente estas festas. A comissão apenas tinha que entender-se com o Abade da freguesia, igualmente Presidente da Junta da Paróquia. O resto dizia respeito ao Administrador do Concelho.
Festa era sinónimo de movimento, convívio, amizade, prazer, bulício... Como tal, os romeiros deslocavam-se a pé de todas as freguesias circunvizinhas, por incontáveis caminhos de regos e pó. Que interessava! Para lá do alegre divertimento, as jovens rurais, donzelas casadoiras, faces afogueadas - queriam lá saber da devoção! -, cuidadosamente preparadas pela mãe, com os melhores adornos - e duas irmãs para evitar qualquer ciúme, levavam vestidos iguais -, dispunham-se em fila no adro do santuário, em lugares estratégicos, esperando com naturalidade a primeira tentativa dos seus admiradores.
Por vezes resistiam e, impassíveis, levavam tempo a arrastar atrás de si os pretendentes - vestiam quase sempre "quinzena" (colete e calça de pano preto), que alternavam a gentileza com a ironia. Mas lá surgia o namoro que redundava, na maior parte das vezes, em casamento. Outros tempos!
Realizações de grande implantação popular, as Festas do Mártir quase não necessitavam de acções objectivamente dirigidas à sua promoção, tão fortes eram os seus atractivos, o entusiasmo, difíceis de igualar, que quase naturalmente estimulavam e motivavam todos aqueles que directa ou indirectamente lhes davam continuidade.
O aproximar da festa, sempre precedida pelas novenas, era vivido com muita ansiedade, sobretudo pelos forasteiros, atraídos por um programa rico e pelo calor e hospitalidade dos freamundenses.
Alegria era coisa que não faltava para oferecer a quem nos visitava.
A principal rua, de S. Francisco ao Cruzeiro, toda em arcaria a balões venezianos, encontrava-se enfeitada com mastros, festões, bandeiras, galhardetes... Milhares de "lumes" - tijelinhas cheias de cebo porque no princípio do século XX se usava pouco a cera -, tornavam os espaços referidos, o largo da Igreja Matriz e a Praça do Mercado, vistosíssimos e encantadores.
Proprietários das residências senhoriais, repletas de familiares e amigos que visitavam Freamunde nestes dias festivos, adornavam-nas e iluminavam-nas caprichosamente durante as noites. As casas e muros eram branqueados com demão de cal.
As Festas eram, e são, necessárias também para unir e fortalecer as estruturas sociais da comunidade.



O primeiro dia da festa abria, ao alvorecer, com salvas de 21 tiros e repique incessante de sinos que despertavam os freamundenses e os convidavam ao arraial.
Os Zés P'reiras,  agora acompanhados de gigantones e cabeçudos, que exprimiam felicidade, para espanto e regozijo dos freamundenses - a sua introdução nas festas e romarias portuguesas, directa ou indirectamente, foi feita através da região espanhola da Galiza (S. Tiago de Compostela), com a importação do costume, em 1893, para a romaria d'Agonia, em Viana do Castelo. Fora, assim, "selado" o surgimento de um dos números mais aguardados do programa. Com as suas batidas ensurdecedoras, "zabumbavam" de porta em porta, horas a fio. Bombos, caixas e gaitas de fole emprestavam um colorido sonoro que atraía a miudagem de pé descalço, até à última rufada.




A acreditada Banda de música local percorria a freguesia, ao som de melodiosos acordes do seu extenso repertório, deliciando os apreciadores até a noite aparecer.
Terminava a acalmia, ao romper d'alva, com a habitual salva de morteiros.


Banda de Freamunde
A dimensão religiosa da Festa englobava a missa solene e a procissão.
A Igreja, adornada com muitas plantas, flores e cortinados bem lançados, abria na manhã de Domingo para a eloquente missa, revestida de enorme magnificência, acompanhada a grande instrumental pela "cappella" da Banda de Freamunde, onde por vezes se interpretavam obras (Tantum Ergo, Avé Maria, Agnus Dei...) de renomados compositores (Badoni, Gounod, Bizet...), com proficiência e mestria, por distintos barítonos da Cidade Invicta.
No púlpito, o panegírico ao Santo era da responsabilidade de eminentes oradores sacros, quase sempre convidados (Augusto Campos Dinis, Abade de Caramos-Felgueiras; D. Clemente Ramos, do Porto; Abade de S. Lourenço das Pias; António Castro, ilustre professor do Internato dos Carvalhos, Porto...). Mas ... o mais insigne, o mais eloquente, o mais credenciado pregador, sempre ouvido com admiração e respeito, era o "nosso" Padre Francisco Augusto Peixoto, de verbo fluído e dominador.



Padre Francisco Peixoto


Ao bater das 14,00 horas, dava entrada no arraial a Banda de Música convidada, escolhida entre as melhores da região, recebida com toda a fidalguia pela "Freamundense", troando várias girândolas de foguetes. 
Nos Coretos, as Bandas (anos houve em que foram contratadas quatro!) faziam ouvir-se alternadamente perante numerosos afectos da arte dos sons.
De permeio, em lugar apropriado, prosseguia a Quermesse (bazar de prendas), organizada por distinto grupo de senhoras da nossa principal elite. Uma das formas a que recorriam para angariação de dinheiro e que perdurou anos a fio.


Quermesse ou bazar de prendas junto ao "Coreto"

Contagiados, certos romeiros divertiam-se com as provas de ciclismo para amadores, os jogos tradicionais - roleta, bilhar, mastro de cocaque, corridas de sacos, tiro... 


Corrida de sacos

Porque a época era de Verão e o calor apertava, não faltava quem se encostasse a uma barraquita e tragasse uns valentes goles desse espirituoso néctar chamado vinho. Os crónicos devotos do deus Baco, sempre cumpridores da promessa. Para os de carteira mais fraca, água açucarada, o "refresco", bebida pelos sequiosos através do mesmo copo e retirada de cântaro forrado a cortiça. Não havia "mal" que lhes pegasse. As raparigas, essas, optavam pelo pirolito ou laranjada "Canadá-Dry", oferta dos namorados. Como complemento, uma mão cheia de tremoços com azeitonas, uma fatia de melancia ou as doçarias (cavacas), produto dos vendeiros.


Laranjada "Canadá Dry"

Ano após ano apresentavam-se diversas companhias de saltimbancos, para representações ao ar livre. Diversões que constituíam um mundo maravilhoso. De quando em vez, arrojadas ascensões de balões "fenianos", cheios de ar quente. O aeronauta, sentado numa espécie de trapézio, subia até uma altura de aproximadamente 800 metros, para deleite dos curiosos de narizes empinados e prontos a correr desenfreadamente seguindo o percurso do dirigível que caía quase sempre em campos de cultivo ou matas, pr'ós lados de Nevogilde.


Aeróstato

A imagem de marca das festividades acontecia a meio da tarde: a procissão, momento sentido, de forte carga emotiva, que com luzido acompanhamento saía da Igreja Matriz, subia a "Feira", atravessava a mítica Gandarela, entre alas imensas de um povo crente, até ao local de partida.
Convocavam-se cidadãos honrados para os distinguir com a tarefa de levar as varas do pálio e segurar as borlas dos deslumbrantes e bem enfeitados andores (5 ou 6 nessas épocas), de quem eram protectores.
Só pegava à charola, corriam vozes noutros tempos, quem desse mais dinheiro. E a tradição deixa adivinhar que raro era o rapaz que não quisesse carregar o peso assombroso, maltratando os pés e os ombros, mesmo usando as "ganchas" numa das mãos, como ainda hoje se faz, peças que servem para manter o andor suspenso durante as paragens.
A "majestosa" procissão incorporava ainda diversos lanceiros, guiões, dezenas de "anjinhos" vestidos a preceito pela firma António Ribeiro & Filho, e depois pelo carismático herdeiro, César de Vilhena Ribeiro (também, mormente nas décadas de quarenta e cinquenta, se fizeram representar armadores da Póvoa, Guimarães, Amarante, Felgueiras...). Cruzes, Irmandades, Confrarias e Ordens desfilavam então numa hierarquia precisa.
Atrás do pálio, sob o qual era conduzido o Santo Lenho - o dinamismo do religioso popular foi, é e será sempre apetecível ao poder político -, a vereação municipal.
Não se pense, entretanto, que as relações entre as comissões, autarquia e o Pároco foram determinantes, sequer fundamentais para a realização das festividades. Não. Houve alguns receios a partir de 1910, com a implantação da República, a crescente laicização e as confusões que daí resultaram. A República era laica mas as gentes, principalmente as do Norte, tinham fé e alegria suficientes para conjugarem os "opostos". Havia comunhão de esforços, participação activa... Todos percebiam o espaço - para o social, para o lazer, para o religioso... - das Festas nas suas categorias ou dimensões. Havia a "força" da promessa a cumprir (no tempo em que se prometia e cumpria) e a graça, o contentamento, de um arraial popular em simultâneo. Mas que os "políticos" às vezes se serviam "delas", lá isso serviam. Ainda agora!


Procissão

As Festas, porém, é que tinham de fazer-se. Custasse o que custasse. Mesmo com os surtos da influenza, varíola, peste bubónica e epidemias de tifo e pneumónica que vitimaram milhares de pessoas... Com o encarecimento dos bens essenciais, em que o pão escasseava para a grande maioria da população... Só em 1908, consequência talvez do Regicídio, e 1914 sofreram interrupções. Neste último ano, Afonso Costa, líder do Partido Democrático no poder, proibiu todas as manifestações, fossem ou não de índole cristã, de alteração da ordem pública. Também em 1916, não houve arraial nocturno, "resquícios" da sangrenta revolta de 14 de Maio do ano anterior que provocou centenas de mortes.
E se avançarmos para a década de vinte, nem com a desvalorização da moeda, a recessão, o espectro da bancarrota, a Festa ao Mártir deixou de realizar-se.
Voltando à procissão,  na retaguarda das duas Bandas, dezenas e dezenas de fiéis, orando, numa absoluta manifestação de fé.
Ao longo do extenso percurso, nunca alterado nos tempos, não faltavam as colgaduras de damasco e linho pendentes das sacadas e peitoris nem as pétalas para atirar ou a verdura para embelezar e perfumar o chão. Devem-se a Leopoldo Pontes Saraiva, durante muitos anos, os maravilhosos tapetes de flores por si orientados nestas ocasiões. Trabalho minucioso e que requeria arte e paciência.


Leopoldo Pontes Saraiva

Já sol posto, era tempo de comer - para alguns, não para todos... - o apetecido carneiro com arroz de forno que sobrara do almoço, bem regado com um tintol da região, e retemperar forças para o que restava da romaria: o arraial nocturno, o número mais apetecido do programa, com iluminações à moda do Minho, as denominadas tijelinhas, ou "lumes", aos milhares, acesas e dispersas em lugares específicos, a cargo de "especialistas" como Constantino Lira (Felgueiras), Plácido Campos (Póvoa do Varzim), Bernardo Barreira (Guimarães), Manuel Silva Pereira (Lamego)...
Madrugada dentro, descantes populares, onde se cantava ao despique e se exercitava sobre certo tipo de poesia, e lançamento de lindos e variados balões (Quem não se lembra, nas décadas de cinquenta, sessenta, setenta..., do contributo de Valentim Augusto Martins "Faneco"?!). 


Descantes populares

O certame das Bandas contratadas durava até ao cantar do galo, para regalo duma multidão de apreciadores.
Vistoso e profuso fogo de ar e preso - o chamado fogo de bonecos, hoje vulgarmente conhecido por "ferreirinhos" - era lançado por dois, três e, por vezes, quatro conhecidos pirotécnicos das redondezas: Melro, Maravilhas, Valbom (Gondomar), Pontes (Lustosa), Teles (Sobrão), Teixeira (Frazão)..., em acérrimas disputas.
O programa encerrava com a queima de "bravíssimas" vacas de fogo, verdadeira arte de pirotecnia, vinda do longínquo Oriente. "Vacas" de madeira puxadas por cordas e que iam lançando sobre o público bichas de rabiar. Esta tradição data, em Freamunde, de 1904. Antes, desde 1897, a emoção crescia com corridas de touros à vara larga, depois de recolhida a procissão. Espectáculo arriscado, ao que parece sem consequências de maior.


Vaca de fogo

A folia terminava, quase sempre, com as habituais zaragatas. Bordoada de criar bicho, com efeitos nefastos, e que obrigava as farmácias Barros e Matos a trabalhos redobrados, tantos eram os curativos. Só as forças de segurança requisitadas (Regedores e G.N.R.) punham cobro aos desacatos, levando sob prisão os que alteravam a ordem pública, os larápios que montavam arraiais atrás das carteiras e os incendiários de colmos e palheiros.
Analisado o período, até 1930 aproximadamente, dá para perceber que as Festas ao Mártir, já então consideradas umas das melhores do norte do país, não eram vazias de ideias.
E assim continuaram no pensamento do freamundense bairrista.
Com a constituição da Cooperativa Eléctrica, as ruas mais centrais da povoação e o exterior da Igreja Matriz passaram a ser iluminadas, à moda do Minho, com alguns milhares de lâmpadas a cor. O efeito tornou-se surpreendente atraindo muitos forasteiros à risonha e neófita "Vila" de Freamunde, a rebentar pelas costuras.
Mas não há bela sem senão. Em 1934, a mística que caracterizava este povo quase se esvaiu. Os comissionados, por razões desconhecidas, talvez desinteresse, não aceitaram o mandato para que foram nomeados, deixando as gentes de Freamunde preocupadas.
Eis então que se apresentou, fazendo corar de vergonha os "homens" , uma "Senhora d'armas" desta terra, a orgulhosa bairrista e opulenta capitalista Dª. Elvira Monteiro, a quem nunca faltou o empenho cívico, que tomou a seu cargo e a expensas próprias a realização das Festas ao Mártir.


Dª. Elvira Monteiro

E logo com uma surpresa no programa: pela primeira vez o povo teve a ocasião de presenciar momentos de verdadeiro folclore, oportunidade, inclusive, para dar ao pé com as danças e cantares das "Rendilheiras da Praça", de Vila do Conde.


Rancho "Rendilheiras da Praça", Vila do Conde

Num Portugal aparentemente despreocupado, indiferente à II Grande Guerra Mundial (1939/1945), como país neutro foi poupado pela máquina destruidora alemã, não escapando, porém, à fome que sucede a todos os conflitos, com o racionamento dos alimentos essenciais. Freamunde, Terra, não foi excepção. Muitas famílias viviam no seio da mais completa miséria. Eram inúmeros os indigentes.
Cônscios da crise, as Festas, essas, é que continuaram refulgentes. Podia lá ser o contrário! O tal "milagre" de dedicação à causa... Bairrismo!   

(Continua)

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