Há doze anos, quando a Assírio
& Alvim lhe publicou uma antologia de textos sobre atores e atrizes, que
tanto o tinham estimulado no amor pelo Cinema, João Bénard da Costa intitulou-a
«Muito lá de Casa».
Sobre José Mário Branco, que
agora nos começa a faltar, não encontro melhor definição para dizer o que ele
significava: era muito cá de casa como se familiar muito próximo se tratasse.
Nela entrou há cinquenta anos e nunca mais saiu, mesmo quando essa casa foi
mudando de sítio e de aspeto, porque acompanhou-nos sempre para os novos
espaços sentidos como nossos.
Esteve presente nos sons que lhe
ouvimos nos espetáculos em vários palcos da Grande Lisboa ou na partilha das
vivências com quantos jantou no imprescindível O Bispo no Seixal, ou ainda nos
documentários sobre si rodados, sobretudo o «Mudar de Vida» de 2014, que nos
ficará como seu legado testamentário.
Entrou sorrateiramente no nosso
vivenciar através de um EP - aquele tipo de disco de vinil entre o single e o
long playin. - em que musicou cantigas medievais. Depois, em 1971, numa pequena
loja em Almada - a Almadanada - onde se vendiam discos e livros mal tolerados
pela ditadura comprámos-lhe o álbum
«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades», e onde, dois anos depois,
adquiriríamos «Margem de certa maneira».
Nessa época, enquanto mal
suportávamos a impaciência por não vermos fim para a cinzentude intimidante do
regime, fazíamos rodar esses, e outros discos - os do Zeca, os do Sérgio, os do
Adriano, os do Cília e tantos outros - como paliativos por nos parecer distante
esse dia inicial e limpo, afinal tão próximo.
No dia em que chegou à Portela
vindo no mesmo avião, que Álvaro Cunhal - a quem conferíamos enfim o rosto,
depois de anos a só conhecermos-lhe o nome! - tivemos a certeza de que
consolidava-se o tempo novo, julgado igualzinho ao que congeminávamos como
ideal.
A ilusão duraria pouco tempo por
culpa nossa, que queríamos a cidade sem muros nem ameias logo para o dia
seguinte mas, sobretudo, por quantos se mostraram hábeis a mudar alguma coisa
para que o essencial ficasse quase na mesma. Quando o vimos no palco da Comuna
para interpretar «A Mãe» ainda a fantasia perdurava, mas quando, a seguir,
ocupou o impressionante espaço da Estufa Fria para representar «O Terramoto no
Chile», já as forças telúricas da exploração tinham remetido os breves
protagonistas de Abril para os anónimos bastidores.
Continuou muito lá de casa nos
sucessivos discos, que íamos comprando, sobretudo aquele sentido ainda mais nosso
por o tornarmos possível através de precursor crowd funding, Das colunas
ouvíamos a estranheza de termos vislumbrado um sonho lindo entretanto acabado e
sermos dos tais que, de alguma forma, se tinham enganado.
Nessa altura retivemos o sopro da
respiração, ao ouvirmos-lhe pela primeira vez o «FMI» no Teatro Aberto, quando
este ainda estava do outro lado da Praça de Espanha. O desespero nele contido
era o nosso por nada se ter alterado, nem mesmo com a morte daquele homem
pequenino, nascido na sua amada cidade, e que nada tinha de bailarino. Apesar
de ganhar as eleições do ano seguinte, Mário Soares ainda privilegiaria o
anticomunismo em detrimento da maioria parlamentar das esquerdas, que tanto o
animou no final da vida. Quase desconhecíamos o filho do gasolineiro de
Boliqueime, mas intuíamos o advento de salazarentas ressurreições como
ricochete do impulso dado para acabarmos de vez com o inóspito passado. Durante
vinte anos suportaríamos a vil criatura ganhando alento nas canções do Zé
Mário, nunca faltando à oportunidade de o rever, sempre que apresentava as
novas e as bem amadas canções de tempos idos nos palcos abertos para plateias
invariavelmente esgotadas.
Nos últimos anos o Vítor Sarmento
convidou-o, tanto quanto me lembro por duas vezes, para vir jantar ao Seixal,
prendando os comensais do restaurante com longas conversas noites adentro.
Oportunidade para lhe ouvirmos, na primeira pessoa, as recordações de uma
riquíssima biografia desde a infância passada no Porto onde despertara para as
iniquidades de quanto se passava à sua volta, até ao exílio em Paris,
sucedendo-as as revelações sobre as quatro décadas e meia vividas num modelo de
«democracia», que sabia muito diferente daquela por que sempre batalhara.
A notícia de ontem constituiu um
choque, mesmo que, nesta altura da vida, sejam mais os que vemos irem-se, do
que quem vai chegando para retomar o nosso testemunho na incerta estafeta
civilizacional humana num planeta manchado pelas injustiças e desigualdades. O
Zé Mário desaparece-nos dos espaços vividos, mas persistirá como sendo cá de
casa. Pelo menos enquanto nós próprios por cá andarmos...
Do blogue Estátua de Sal
Publicada por jorge rocha

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