Rui Miguel Tovar entrevista Veiga
Trigo, um árbitro mítico dos anos 80 e 90 e um alentejano com memória de
elefante. Sabe qual o ambiente mais quente que apanhou? «Nada se compara a um
Alcobaça-Nazarenos»
Rui Miguel Tovar está no
Maisfutebol com a rubrica . Para ler todas as semanas e
saborear conversas por vezes improváveis com as principais figuras do futebol.
Já sabe, basta escrever para entrar neste mundo
maravilhoso de Rui Miguel Tovar.
Beja, ainda e sempre. Se há uma
semana entrevistamos o Papagaio, nem nos passa pela cabeça falhar o Khadafi. É
como a lógica da batata. Ao fiscal-de-linha Teixeira Correia, segue-se o
árbitro Veiga Trigo. Naturalmente. O encontro faz-se ali na famosa pastelaria
Luiz da Rocha às 1212 em ponto. No quadradinho seguinte, já estamos cá fora. O
sol aparece, a malta espreguiça-se nas cadeiras de metal. «Os camones
aproveitam qualquer nesga, é demais», graceja Veiga Trigo. «Está com fome, o
Rui? Vamos aqui a uma tasca bem boa.» Meio segundo depois, entramos num
restaurante de esquina, O Forno. Cumprimentos para aqui, sorrisos para ali.
Estamos a jogar em casa. Prato do dia: cozido de couve. Antevê-se goleada.
Cá estamos em Beja.
Então o meu amigo anda no
jornalismo, como o pai. Bom, muito bom.
Comecei no Record.
Olhe, o único jornalista em
actividade no Record que conheço é o Rui Dias. Ainda falamos de vez em quando.
Também era amigo do Carlos Arsénio, que tratava dos assuntos da arbitragem. N’A
Bola, conhecia Carlos Rias, Manuel António, João Bonzinho, entre outros. O
jornal A Bola era uma escola de bem escrever. Já começássemos a lê-la,
aprendíamos português com Homero Serpa, Vítor Santos e Carlos Pinhão. Ainda me
lembro muito bem dos cadernos escritos pelo Carlos Pinhão, com desenhos do João
Martins. Chamavam-se ‘Futebol de A a Z’, uma relíquia. Foi uma ideia lançada
pela Direcção Geral de Desportos, ainda no tempo do Melo de Carvalho.
Melo de Carvalho.
Ele incentivava o desporto em
massa, bairros contra bairros. Eram movimentos populistas com resultados à vista.
Foi assim que nasceram alguns valores portugueses, como o Carlos Lopes, a
Aurora [Cunha] e a Rosa [Mota]. Há pouco, esqueci-me de falar do Alves dos
Santos, d’A Bola. Era conhecido como o Alves dos Cantos, ahahah.
Isso é o jornalismo escrito. E o
televisivo?
Ahhhh, o Domingo Desportivo.
Saudades de um programa de futebol a sério. Até lhe posso dizer que, muitas
vezes, cheguei a parar no caminho para ver o programa.
Quando vinha de apitar os jogos
da 1.ª divisão?
Nem mais.
Como eram essas viagens?
Longas, ahahah. Quando comecei a
apitar na 1.ª divisão, levava oito horas a chegar ao Porto. Quando acabei, já
eram só quatro.
Quando é que começou a apitar na
1.ª divisão?
Em 1978-79.
Para chegar a esse nível, quantos
anos nas outras divisões?
Um ano no quadro de acesso, a
nível regional, um ano na 3.ª divisão e um ano na 2.ª. Fiquei em primeiro lugar
em todos esses rankings, foi tudo a eito.
E também foi fiscal-de-linha,
certo?
De muitos árbitros: Alder Dante,
Carlos Valente, Vítor Correia. Fiz ene jogos internacionais com essa malta
toda.
Como é que se mudava o chip de
árbitro para fiscal-de-linha?
Fácil, tem a ver com
concentração.
Deve ter visitado muitos países?
Uma catrefada deles.
Qual o mais estranho?
Roménia, do tempo do Ceaucescu.
Fomos fazer a meia-final da Taça dos Campeões 1989, entre Steaua e Galatasaray.
Vítor Correia no apito, eu e o Miranda Dias a fiscais-de-linha. Que país
sombrio. Sombrio, sombrio. Uma falta de respeito pelas pessoas por demais
evidente.
Quanto foi?
Steaua, 4-0. Depois, na Turquia,
eles empataram 1-1. Foram à final e perderam com o Milan. A equipa do Steaua
era fenomenal, escolheram mesmo os melhores, estava lá aquele que depois jogou
no Barcelona e Real Madrid. [Veiga contemporiza, fecha os olhos e toma lá
disto] O Hagi.
E o país mais surpreendente de
bom?
Suécia-Albânia, em 1989. Fui com
o Alder Dante. Que qualidade de vida. O jogo foi em Solna, nas imediações de
Estocolmo, estilo Jamor em relação a Lisboa. Naquela altura, estava um frio
danado. Chegámos ao estádio e a relva era aquecida, tal como os lugares na
bancada. Nunca tinha visto uma coisa assim, que classe.
E os jogadores lá fora, outra
loiça?
Mais respeito. Não havia a
filosofia do mergulho para a piscina daqui. Olhe, gostei muito de apitar em
Inglaterra. Tive a sorte de ir a Anfield, um Liverpool-Apollon [6-1 em 1992]. O
guarda-redes era o Grobbelaar, do Zimbabué. O avançado era o Ian Rush, de
Gales. Quando acabou o jogo, ele pediu-me a bola porque tinha marcado quatro
golos. Aquilo havia uma intensidade brutal e jogava-se sempre para a frente.
Não havia cá faltas nem faltinhas. Agora se me perguntar onde é que me senti
mais árbitro...
Concedo, vá: onde é que me sentiu
mais árbitro?
Ahahah. Foi nos Emiratos Árabes,
na 12.ª Taça do Golfo. Todos os dias acordávamos às 6 da manhã e tínhamos de
estar no hall do hotel às 06h15 para começar os treinos dentro de um ginásio
com ar condicionado. Estávamos num hotel cinco estrelas, um Hilton. Fiz oito
jogos dessa competição, incluindo o da abertura e o da final.
E mais competições?
A nível dos sub16, fiz dois
Europeus. Só que tive um azar do caraças.
Então?
Portugal foi à final desses dois
Europeus, um em Espanha e outro em Israel.
É o tempo do Carlos Queiroz?
Nem mais. A partir do momento em
que a selecção portuguesa passava para a segunda fase, os árbitros desses país
eram automaticamente eliminados.
Apitou até quando?
95-96
Chi-ça, então foi árbitro da 1.ª
divisão desde o meu nascimento até à minha entrada na faculdade.
Ahahahahahah. E tive um handicap:
só comecei a ser árbitro a sério aos 21 anos. Aí é que deixei o futebol e
dediquei-me a tempo inteiro à arbitragem.
Ai jogava futebol?
Jogava.
Onde?
À baliza e a defesa-direito.
E que tal?
Eterno suplente. Estava farto de
aquecer o banco.
E foi para árbitro?
Primeiro, fui para Angola, como
militar. Estive lá uns 18/19 meses. Voltei no dia 31 Janeiro 1975, uma
segunda-feira. No sábado seguinte, já estava a apitar.
Que tal Angola?
Olhe, fartei-me de jogar futebol.
E voleibol.
Voleibol?
Gostava muito de jogar voleibol.
Um certo dia, ia a passar na rua, ao lado de um campo, e a bola veio-me parar
aos pés. Agarrei na bola e servi. Eles ficaram espantados e perguntaram-me se
queria juntar-me a eles. Só se fosse fora do horário do meu expediente, claro.
Eles aceitaram e lá joguei pela empresa Diamang, os diamantes de Angola.
Diamantes, pois.
E não só. A Diamang tinha a maior
manada de gado do mundo, umas 3 milhões de cabeças.
Uyyyyyy.
Ah pois é. Aquilo em Angola é
tudo xxl em comparação com o nosso país. Bem, resumindo: comecei a apitar por
gosto.
E o que fazia nessa altura?
Trabalhava numa cervejaria.
Ganhava dez escudos por dia.
Por dia?
Por dia. Um certo dia, um senhor
disse-me para ser fiscal-de-linha de um jogo. Resisti à ideia, depois lá fui. E
ganhei o gosto. Às duas por três, já havia fins-de-semana em que apitava cinco
jogos: dois ao sábado e três ao domingo. Por cada jogo, ganhava 7500 escudos.
Era dinheiro.
Cinco jogos em dois dias é dose.
Digo porque corria de um lado para o outro.
Há ali um jogo que marca a minha
carreira, porque o senhor Armando Nascimento, presidente do Conselho de
Arbitragem de Beja, está nas bancadas e vê-me em acção. Como ele frequentava a
cervejaria onde trabalhava, virou-se para mim e peguntou-me se sabia quais as
leis de jogo. Dito isto, emprestou-me um livrinho, o guia universal da
arbitragem.
Lembra-se da estreia na 1.ª
divisão?
[Veiga Trigo olha para mim como
se dissesse ‘ora essa, claro que sim’] Quarta jornada do campeonato, duas
equipas que iam à frente: Belenenses-Boavista. Foi a minha primeira pega com o
Valentim Loureiro.
Ganhou o Belenenses, imagino.
Um-zero. [Veiga Trigo faz a voz
rouca de Valentim] ‘Mandam para aqui esses moços pequenos. Você nem tem culpa,
quem tem culpa é quem o manda para aqui’.
Em que circunstância?
No final do jogo, ainda no
relvado, a caminho do balneário. O treinador do Belenenses era o Juca e só
abanava a cabeça.
E o Veiga Trigo?
‘Senhor Major, não lhe dou
diálogo nenhum.’ E ele continuava a matraquilhar-me ‘E esses moços pequenos nem
diálogo dão’. Lembra-se do jornal desportivo Off-Side?
Claaaaaro.
Ainda hoje guardo um recorte
desse jornal em que o Valentim Loureiro está assim [Veiga mete um ar no ar] e
eu assim [Veiga estende a mão para a frente como quem diz ‘primeiro o senhor,
se faz favor’]. Sabe qual a coisa que mais gostava? Quando ia aos estádios com
balneários em que se ouvia tudo.
Porquê?
Ouvíamos as palestras. E, às duas
por três, os treinadores diziam aos jogadores: ‘ponham-se a pau que este gajo é
um filho da puta, não dá confiança a ninguém’. Virava-me para os meus
fiscais-de-linha e dizia-lhes ‘estamos bem, estamos bem’.
A malta era porreira. Os
jogadores, digo.
Lembro-me do primeiro estrangeiro
do Benfica, o brasileiro Jorge Gomes. Apanhei-o também a jogar no Braga, já
depois do Benfica. No intervalo de um determinado jogo no 1.º Maio, alguém me
avisou ‘põe-te em pau que ele leva um algodão com éter para meter na cara dos
adversários como quem não quer a coisa’. A bola ainda estava no meio-campo, à
espera do reinício, quando o chamei à parte. E ele todo cerimonioso, ‘diga
senhor juiz’.
E o Veiga?
‘Jogue fora esse algodão.’
E ele?
‘É só para desinfectar, isto não
é nada.’
E o Veiga?
‘Jogue fora ou é expulso agora.’
E ele?
Jogou fora, que remédio. Agora
lembrei-me de outra do Major. Era dia de Aves-Boavista e ele saiu-se com esta
em entrevista a um jornal: ‘Aves, onde fica isso?’. Armou uma barraca tremenda.
Antes do jogo, o Hernâni Ascenção, do Boavista, vem ter comigo e diz-me ‘temos
de fazer uma pequena alteração, quem vai para o meu banco no meu lugar é o
Valentim’.
Então?
Ele estava a ser apertado, então
era melhor ver o jogo no banco de suplentes.
Acabou como?
Empate, 0-0 ou 1-1. O Valentim
teve de sair sob escolta policial, dentro do jipe da Guarda. Como foi ao mesmo
tempo que eu, perguntei-lhe ‘então major, hoje calhou a si’.
E ele?
‘Nem sempre calha aos mesmos.’
Ahahah.
O Veiga Trigo saiu sempre pelo
próprio pé?
Só tive dois problemas. Um em
Braga, em que me partiram o carro todo. Saí dentro do meu carro, é certo, mas
estava todo partido. Nessa tarde, o Braga empatou com o Vitória FC, acho.
E o outro problema?
A unica vez que saí num carro de
polícia foi num Farense-Vitória FC em juniores.
Juniores?
A falta de conhecimento das
pessoas é alarmante. A bola já estava longe quando vi o guarda-redes do Farense
mandar um g’anda pero ao avançado do Vitória FC. Interrompi o jogo: expulsei o
guarda-redes e marquei o penálti. Os adeptos, completamente desvairados, diziam
‘expulsar ainda vá, agora marcar o penálti’.
Que paródia, imagino o susto.
Também há os pseudo-sustos.
Como assim?
Um dia, fiz o União de
Lamas-Lourosa. Você sabe que Lamas começa onde acaba Lourosa?
Nem ideia.
Pois, assim é. Mal estacionei na
garagem, vem ter comigo um sargento da Guarda. ‘Você nem queira saber o que
está para aqui montado?’ E eu, ‘Então? Não diga isso, vai ser uma festa’.
E o sargento?
Nada convencido, com medo da
confusão.
Que tal esse jogo?
Começou bem. Um paraquedista
trouxe-me a bola do jogo.
Uau.
A sério, foi mesmo bonito. Ao
intervalo, 0-0. A caminho do balneário, o tal sargento diz-me ‘isto está a
correr tão bem’. Na segunda parte, 1-0 do Lamas. A seguir, 1-1 do Lourosa.
Chega ao minuto 90, pi pi e acabou. Quando cheguei ao balneário, sinto um
abraço ‘você salvou isto tudo, você é o maior’. Era o sargento, mais que
aliviado pela ausência de problemas.
Problemas é o costume, não?
Há jogos e jogos.
Vou atirar um campo ao calhas: Vidal
Pinheiro.
Vidal Pinheiro? Pelado, ò Rui. É
o célebre jogo do relógio do Pinto da Costa.
Ai é?
Salgueiros 0 Porto 0. Dia de
chuva, campo enlameado. Aos 91 minutos, apitei para o fim. O Pinto da Costa
tinha uma coisa: não se manifestava em campo. Acabo o jogo, vou para o
balneário e aparece-me o Teles Roxo, acompanhado pelo Pinto da Costa. Os dois podiam
estar lá, visto que assinaram o seu nome na ficha de jogo. O Pinto da Costa
estava fora de si: ‘Você não deu tempo nenhum, foi uma vergonha. Devia deitar
fora o seu relógio’. Olhei para ele e vi o seu relógio. Um Omega todo grande e
tal. ‘Se me der o seu relógio, deito o meu fora’.
E ele?
‘Acabou a conversa. Boa tarde,
boa tarde.’ E foi-se embora.
José Alvalade?
Deve ser o estádio onde apitei
mais vezes. Até há a história do leão.
Leão?
Leão. Na jaula.
Na jaula?
Então ò Rui.
Conte-me, não sei nada disso.
Dérbi com o Benfica, em Dezembro.
Deviam faltar dois ou três dias para o Natal. O Victor Hugo Cardinali ofereceu
um leão ao Sporting para mostrar aos adeptos. Foi um aparato imenso, claro. O
leão passou na pista de tartan e a malta toda contente. Começa o jogo e um dos
meus fiscais-de-linha dá dois passos em frente. E eu a pensar ‘o que é que ele
quer?’. Fui lá e perguntei-lhe ‘o que se passa, João?’
Qual era o galho?
‘O leão está atrás de mim, não o
quero aqui.’
Nem dentro da jaula?
Nem dentro da jaula, ahahahah.
E então?
Já não me lembro se o director
desportivo do Sporting era o Manolo Vidal. Sei que chamei o responsável do
Sporting e pedi-lhe para tirar a jaula dali. Ganhou o Sporting, 1-0 de Manuel
Fernandes.
Que tal, como capitão?
Impecável. Dos melhores jogadores
que apanhei, sabia manifestar-se.
Como assim?
Falava para o ar, sem gesticular.
Corria ao meu lado e dizia ‘ò Veiga, foi penálti, foi empurrão, foi isto, foi
aquilo’.
Era comum, o falar para o ar?
Só para jogadores inteligentes.
Havia o Humberto no Benfica, por
exemplo.
Outro gentleman. Houve uma época
em que expulsei quase toda a defesa da selecção nacional: Humberto em Viseu,
Inácio na Amora e Eurico já não sei onde. Só faltou o defesa-direito Gabriel.
Era o mais tranquilo, não?
Quando entrava, cuidado. Uyyyyyy.
Mas sim, era tranquilo.
Manuel Fernandes, Humberto
Coelho. E o Gomes, do Porto?
Tinha piada, o Gomes. ‘Ò Senhor
Veiga, ò Senhor Veiga, aquilo foi falta, aquilo foi penálti. E eu, ‘para a
próxima, a gente vê isso melhor’.
Gomes, capitão do Artur Jorge.
Artur Jorge era um senhor. Ainda
o apanhei como jogador, no Belenenses. Não queria cá confusões nem nada, só
queria jogar. Mas vou dizer-lhe uma coisa: o jogador mais evoluído tenicamente
que vi foi o Mário Ventura. Jogou no Vitória FC, Juventude de Évora, Farense.
Mário Ventura, fale com os mais velhos e eles dizem-lhe. Era indisciplinado e
isso foi pena. Era mau dentro do campo, até para os próprios companheiros. Se
não estou em erro, também jogou em Guimarães.
Bem lembrado. Guimarães, que tal
essas experiências?
O Pimentinha [Machado] atrás de
mim, a refilar por tudo e mais alguma coisa. Pedi ao comissário da polícia para
tratar dele. Muito nervo. Como em Braga, aliás. Aquela massa associativa,
cuidadoooooo. Mas nada se compara a um Alcobaça-Nazarenos.
Ai sim?
Dentro do campo, tudo bem. No
final do jogo, tudo mal. As varinas entraram e armaram uma barraca de todo o
tamanho.
Já falou de Valentim Loureiro,
Pinto da Costa e Pimenta Machado. E o Sousa Cintra, por exemplo?
Sem comentários.
Era chato?
Um dia, meteu-se comigo.
Como?
Através dos jornais. Respondi-lhe
na mesma moeda, com uma entrevista ao Record. Olhe, ao tal Carlos Arsénio. ‘Na
minha terra, um burro carregado de ouro continua a ser um burro’.
Ainda Sporting, o João Rocha?
Um senhor como poucos.
Cumprimentava-nos à entrada do estádio, com um ‘boa sorte’. E cumprimentava-nos
à saída, com um ‘boa viagem’. Gente dessa já não se encontra. Tal como o Borges
Coutinho, do Benfica.
[bom, está na hora: puxo do
portátil, abro o ficheiro da 1.ª divisão, escolho a célula do árbitro e escrevo
Veiga Trigo; aparecem-me 196 jogos]
O último de todos foi um
Chaves-Braga. Cheguei a Beja, meti o relatório de jogo no correio, meti também
a carta a dizer que tinha encerrado a minha actividade e às 7 da manhã desse
dia fui para Macau. Quinze dias de férias.
Acabou?
Acabou.
Em que dia?
Ò Rui, 11 Fevereiro 1996.
E o primeiro jogo, recorde-me se
faz favor?
16 Setembro 1979 [na mouche].
Golo de Baltasar [na mouche]. Que nem é Baltasar. Chama-se Vítor Manuel Jesus.
Baltasar é alcunha.
Vejo aqui um Sporting-Rio Ave.
Cinco-zero [na mouche], cinco
golos de Jordão [na mouche]. Não chateava ninguém. Ele e o Manuel Fernandes.
E o Oliveira?
O Toninho? Só queria que o jogo
acabasse.
Varzim-Porto?
Zero-zero [na mouche], é o ano em
que o Porto falha o tri [na mouche]. Ganha o Sporting. [na mouche]. Jogou o
Biffe, um avançado brasileiro do Porto. Atirou-se três vezes para a piscina. Na
Póvoa, à volta do estádio, havia três vezes mais pessoas do que lá dentro.
Porto-Espinho?
Sábado à noite [na mouche], jogo
para a RTP. Um nevoeiro intenso, não se via nada através das câmaras. Mas eu
via de baliza a baliza e o jogo foi adiante. É o célebre jogo em que o Pedroto
disse aos jornalistas: ‘Este homem é para correr a maratona, não é para andar a
apitar’. O treinador do Espinho era o Manuel José [na mouche].
Académico Viseu-Benfica?
O treinador do Benfica era o
Lajos Baroti [na mouche]. Foi o último jogo no pelado do Fontelo. Pus a andar o
Humberto, segundo amarelo.
Espinho-Benfica?
Estreia do Eriksson [na mouche],
no Estádio Conde Dias Garcia, em São João da Madeira [na mouche]. E era para
não apitar.
Então?
O porteiro insistiu em pedir-me o
documento. ‘Não tenho documento nenhum, fui avisado por telefone’. E ele fez
finca-pé. Metemos os sacos no táxi e fomo-nos embora. Não íamos, claro, mas
fizemos aquele teatro. Ahahah. Demos a volta ao estádio dentro do táxi e o tal
homem a correr atrás de nós. Esse jogo em São João da Madeira é o primeiro da
regra dos três passos do guarda-redes com a bola.
Rio Ave-Benfica.
Zero-um [na mouche], golo de Nené
[na mouche]. Chegámos à Avenida, o antigo estádio do Rio Ave, e tudo a
transbordar de pessoas. Para entrar no estádio, tivemos de chamar a polícia. Só
gente, gente, gente e mais gente. Encheram-se ali uns quatro estádios. Às duas
por três, no início do jogo, havia adeptos dentro do campo. Fui falar então com
o comissário da polícia e ele perguntou-me se se adiava o jogo. Não, nada
disso, disse-lhe eu. Se adiássemos, era o bom e o bonito. Uma caldeirada.
Apenas tivemos de afastar os adeptos da linha lateral para dar espaço aos
fiscais-de-linha. No final do jogo, o Eriksson disse-me ‘signore, isto seria
impossível no meu país’.
Farense-Boavista?
Meti o Alves na rua [na mouche].
Rio Ave-Porto?
Esse foi outro jogo daqueles.
Quando chego ao estádio, estava tudo a arder. A malta desvairada. ‘O que se
passa?’, pergunto a um dirigente. E ele ‘o Quim assinou pelo Porto ontem à
noite’.
Boavista-Porto?
Um-zero. [na mouche] Cláudio
Adão, de penálti. [na mouche] Sábado à tarde. [na mouche] Estava no torneio
internacional de Tróia e marcaram-me o jogo. Foi uma coisa de loucos. No final,
houve porrada. Os gajos do Porto até os canos de água partiram para os do
Boavista não tomarem banho.
Penafiel-Sporting?
Dois-zero. [na mouche] Que
limpeza do Penafiel, nada a dizer. Era o Sporting do Toshack [na mouche], que
tinha sido eliminado na Taça dos Campeões a meio dessa semana. Foi a
inauguração do relvado do 25 de Abril.
Benfica-Vitória FC?
Zero-um. [na mouche] No Jamor [na
mouche]. Golo do Aparício. [na mouche] O treinador era o Skovdahl. [na mouche]
Belenenses Porto.
Zero-zero. [na mouche] Fui
repreender o Marinho Peres. Que maluco, esse. A bola estava jogável e ele entra
dentro do campo para dar-lhe um pontapé
Chaves-Porto.
Dois-zero. [na mouche] Essa é
outra história. Às duas por três, um dos meus fiscais-de-linha levanta a
bandeirola e diz-me ‘há aqui um gajo a chamar nomes e não pode ser muito longe,
não pode ser da assistência’.
E o Veiga Trigo?
Quando souberes quem é, levanta a
bandeirola e diz-me. Passados cinco minutos, paro o jogo de novo e ele diz-me
que é o sub-chefe da polícia. Atravesso o campo todo e vou falar com o
comissário. ‘Temos aqui um problema, o sub-chefe está a insultar o meu fiscal-de-linha.
Se continuar, faço queixa ao Ministério da Administração Interna.’ A resposta
do comissário foi exemplar. ‘Deixe comigo, vou mandá-lo guardar o seu carro.’
Benfica-Portimonense?
Cinco-zero [na mouche], hat-trick
de Magnusson [na mouche]. Foi a um sábado à tarde [na mouche], porque fui
jantar com Pinto de Sousa ao Evaristo [Solar dos Presuntos].
Benfica-Vitória FC?
O do golo do Mladenov?
Sim.
Que jogador, espectacular, Quando
chegou a Portugal, para o Belenenses, foi um achado. Que craque. Havia
estrangeiros magníficos. E búlgaros então. O Radi, do Chaves. O Kostadinov, do
Porto. Também havia africanos óptimos. Ricky e Yekini, por exemplo. No
Penafiel, havia um Amancio. Paraguaio. Tratava-me por compadre.
Ai sim?
Ele chamava-se Amancio Trigo,
ahahah.
Porto-Benfica?
O da Supertaça ou o de Braga?
Braga?
Apitei um clássico no 1.º de
Maio, para a primeira jornada do campeonato. [na mouche]
Não, este é o da Supertaça.
Em Coimbra. [na mouche]
Expulsou o Rui Barros?
Pois claro, então ele chamou-me
filho da puta. Ainda por cima, à frente do banco do Benfica. No final, veio
pedir desculpa. ‘Eu desculpo, mas o cartão vai ser sempre registado.’
Porto-Sporting?
O do Jacques?
Errrrr, não.
Esse do Jacques foi 2-0. [na mouche]
O Jacques e o Jordão, do Sporting, andavam a lutar pelo título de melhor
marcador. Ganhou o Jacques. [na mouche]
O Porto-Sporting de que falava é
um 1-1.
Golo do Figo?
Na mouche.
Nesse golo, o fiscal-de-linha
levantou-me a bandeirola, só que eu estava a seguir o lance tão de perto que
mandei seguir. Tinha a certeza da legalidade do golo. Comprovada depois pelas
imagens televisivas.
Portimonense-Porto?
Herman Stessl como treinador do
Porto. [na mouche]
Como é que sabe isso?
Já não tenho memória de elefante.
Ora essa.
Já não, já não. Também apitei um
Porto em casa com o Stessl. [na mouche] Perdeu 2-1 com o Rio Ave do Mourinho
Félix. [na mouche] Um sábado à noite. [na mouche] Golo do Figueiredo, um
central, a cinco minutos do fim. [na mouche]
E o José?
José Mourinho? Apanhei-o como
treinador dos juniores do Vitoria FC.
E finais da Taça de Portugal?
Duas, seguidas e ambas com o
Boavista. Na primeira, 2-1 ao Porto. Na segunda, 5-2 para o Benfica.
Essa final do 5-2 é a do Futre.
Nem mais.
Expulsa alguém do banco?
O Alfredo, guarda-redes do
Boavista. Começou aos pulos e aos gritos. ’Vai lá tomar banho mais cedo’. Na
4.ª feira seguinte, fiz um jogo de confratenização em Faro para recolher fundos
ao Aboim Ascensão e o Alfredo estava lá. ‘Você não perdoa nada’, diz-me. E eu
‘quem perdoa é Cristo; eu cá não perdoo nada’.
E jogos internacionais, há mais
alguma recordação?
Uma vez, em Malta, chovia tanto
tanto tanto. Havia água por todos os lados. Qual foi o sistema dos dirigentes
desse clube maltês? Com a ajuda dos placards de publicidade, arrastaram a água
para fora do relvado. Foi tudo num instante. Que maravilha. Jogámos: La
Valletta 1 Trabzonspor 3 ou 4.
...
Oviedo, acho que 1988. Espanha 1
Jugoslávia 2. O guarda-redes da Jugoslávia era o Ivkovic.
Apitou muitos conhecidos?
Desconhecidos, até.
Ahahahah.
A sério, lembro-me de uma
aventura de Lisboa até Sofia. O voo era simples, com escala em Madrid. Acontece
que deixou de haver ligação em Madrid e tivemos, eu e um outro fiscal-de-linha,
ir por Viena.
E o outro fiscal-de-linha?
O Alder Dante foi por Barcelona.
Só havia um lugar no voo e lá foi ele. Encontrámo-nos em Viena, no aeroporto. E
seguimos para Sofia. Depois Plovdiv. Era o Bulgária-Turquia dos sub21. Nem
imagina a rivalidade.
Nem ideia, de facto.
Aquilo é fogo. Ganha a Bulgária,
1-0 de Kostadinov.
O nosso Kostadinov?
Esse mesmo.
E já o conhecia?
Nada disso. Mas como tive de
tirar fotocópias dos cartões de identidade de todos os jogadores desse jogo
para enviar à UEFA, fiquei com uma cópia. Ainda a tenho lá em casa. Aquilo
ficou-me gravado na memória. E o Kostadinov também. Quando o vi cá em Portugal,
perguntei-lhe e ele confirmou. Até lhe digo mais, esse jogo foi no dia da final
da Taça dos Campeões entre Benfica e PSV, em Estugarda.
Quanto era cada jogo
internacional?
Ganhávamos uma diária de 125
francos suíços, fora viagem, hotel e alimentação, por conta da UEFA.
Mil obrigados, Veiga Trigo.
Calma, vou levá-lo ao comboio.
[na mouche]
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