Há 40 anos, em 28 de agosto de 1979, o último ditador-presidente, João Batista Figueiredo, sancionava a Lei 6683, recém-votada pelo Congresso, a Lei da Anistia, prenúncio do fim da ditadura.
Mais de sete mil brasileiros
viviam no exílio e ainda havia cerca de 800 presos políticos, fora os mortos e
os desaparecidos. Os exilados voltaram, os presos acabaram todos libertados mas
a lei garantiu também impunidade aos que sequestraram, torturam, mataram e
sumiram com os corpos. A correlação de forças, na época, não permitiu a
rejeição do perdão recíproco. Seis anos depois foi que o poder voltou aos
civis. Nas décadas seguintes aprimoramos a vivência e o sistema democrático,
até que tudo começou a desmoronar em 2016, e aqui estamos, sob um governo de
índole autoritária que vem restaurando o poder militar, anulando conquistas e a
própria efetividade da Lei da Anistia.
Em 1979 mais de sete mil
brasileiros viviam no exílio e mais de 800 eram presos políticos. A luta
começou com Terezinha Zerbini e seu Movimento Feminino pela Anistia, que tinha
apoio da Igreja Católica, mas tornou-se bandeira mais ampla em 1977, com a
volta do movimento estudantil – do qual foi marco a greve da UnB, de que
participei e na qual, como tantos outros, fui presa e punida. Iramaia Benjamin
criou o primeiro CBA – Comitê Brasileiro pela Anistia, no Rio, com apoio da
ABI, OAB, CNBB e outras entidades. Outros CBAs foram criados Brasil afora e os
atos públicos, inicialmente tímidos, começaram a crescer. Geisel ainda
governava, prometendo abertura controlada. O Congresso, embora dominado pela
Arena, abraçou a bandeira também. Em 1979 o sucessor Figueiredo propõe a lei
que seria aprovada em agosto.
Nos dias que se seguiram à sanção os exilados começaram a chegar. No primeiro grupo, chegou Dulce Maia, que fora banida. No 7 de Setembro chegou Leonel Brizola, após 15 anos de exílio, saudoso “mas com o coração limpo de ódios”. Chegaram Prestes, Miguel Arrais e tantos outros. Vivendo um final de clandestinidade na Baixada Fluminense, por conta de um processo em Brasília, eu e meu companheiro de então, Julio Tavares, chegamos a ir ao Galeão assistir a uma destas chegadas. O sistema de som tocava “O bêbado e a equilibrista”, a música de João Bosco e Aldir Blanc que, na voz de Elis Regina, tornara-se o hino da campanha da Anistia. Falava de um Brasil que chorava pela volta do irmão do Henfil. O irmão do cartunista, Betinho, chegaria mais para o final de setembro.
Tanto tempo depois, ainda “choram
Marias e Clarices no solo do Brasil”. Marias pobres e desconhecidas, cujos
filhos são mortos por policiais que também ficam impunes. Clarices que têm
filhos ou maridos torturados nas delegacias de polícia, onde a tortura ainda é
muito aplicada a presos comuns.
Tanto depois, Bolsonaro governa
com os militares e faz do poder armado o pilar e o símbolo de seu governo. Como
agora, mandando tropas para combater o incêndio amazônico provocado por seu
próprio discurso anti-ambientalista, anti-ecológico, anti-índios, anti-Ongs. Os
que torturaram e mataram vão morrendo sem pagar pelos crimes, e agora é que não
pagarão mesmo. Tentativas de mudar a reciprocidade da lei fracassaram, mas tem
razão é José Genoíno: o melhor teria sido que os governos democráticos, de FHC
ou de Lula e Dilma, tivessem forçado um pedido de desculpas das Forças Armadas
à Nação, reconhecendo o que fizeram. Com isso, não teríamos aí um presidente
que nega ter havido ditadura, nem direitistas pedindo a volta do regime
militar. Teria sido a melhor forma de bloquear novas tentações autoritárias.
Entre tantos desmontes do que foi
construído nos anos dourados da democracia, Bolsonaro vem liquidando também com
o legado da Lei da Anistia. Fernando Henrique ampliou o alcance da lei e criou
em 1995 a Comissão de Mortos e Desaparecidos, tendo José Gregori, ministro da
Justiça, como organizador. Recentemente o governo Bolsonaro trocou três de seus
membros por militares e deputados do PSL, forçando a saída da procuradora
Eugênia Gonzaga da presidência. O presidente havia ficado furioso por ter a
Comissão reconhecido que Fernando Santa Cruz foi morto pela ditadura,
concedendo o atestado de óbito aos familiares. Por isso o ataque à memória do
morto e o insulto a seu filho, o presidente da OAB Felipe Santa Cruz.
A Comissão Nacional de Anistia,
onde ainda tramitam milhares de pedidos de reparação, também teve seus membros
trocados pela ministra Damares e recentemente suspendeu o julgamento do pedido
de anistia de Dilma Rousseff, que havia tido a dignidade de pedir que ele não
fosse examinado enquanto ela fosse ministra, e depois presidente da República.
Ela foi torturada durante 19 dias sob o comando do coronel Ustra. “O terror da
Dilma na prisão”, diria Bolsonaro ao votar a favor do impeachment, dedicando o
voto ao torturador. Naquele momento, o Congresso deveria tê-lo punido por fazer
apologia à ditadura e à tortura.
E vai se perdendo também todo o
trabalho, feito principalmente por Nilmário Miranda e Paulo Vanucci, de
preservação do direito à memória e à verdade. Não, não podemos esquecer o que
se passou neste país, justo agora quando o passado ameaça voltar, se não com a
mesma forma de outrora, mas com outras vestes e outras armas, atentando porém,
do mesmo modo, contra a liberdade, a democracia e a justiça.
Do jornal o Tornado
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