Atropelados pela ditadura do entretenimento, podemos enquanto
“informadores” desde já colocar a bandeira a meia-haste. O jornalismo não está
a morrer. Está a cometer suicídio em direto.
Temi que algum jornalista se oferecesse para partilhar a cadeia com
Armando Vara, só para ver como este se sentia “já lá dentro”. A porta ia-se
fechando, em câmara lenta, e o enxame de microfones não largava a presa. O
ex-banqueiro em tempos já se tinha visto rodeado do mesmo lamentável espetáculo
de câmaras a atropelarem-se, para esmolar o “soundbite” que permitiria abrir o
jornal da noite desse dia com o vómito sorridente do seu imenso poder. Talvez
Vara gostasse desse ataque, agora repetido, com as câmaras atraídas pelo cheiro
da putrefação da dignidade perdida e da humilhação total.
Às 16 horas e 45 minutos “é o momento em que chega Armando Vara” para
se dirigir “à cela do rés-do-chão, a mais próxima do guarda da ala, onde antes
estavam dois outros detidos que acabaram por ser deslocados…”. Que interesse
público existe nisto? Nenhum. Mas o relato prossegue indiferente ao facto de
aquele nome corresponder, agora, apenas a um homem que, no seu compreensível
sofrimento, precisava de mais caridade do que de publicidade. A exemplaridade
na Justiça poucas vezes é “exemplar”.
“Era o momento aguardado por muitos jornalistas” dizia a repórter em
direto. Não a critico. Escalada para o serviço, enregelada, certamente tão
interessada no caso e nos pormenores como outro português qualquer, falava como
se estivesse programada para desempenhar aquele papel. Tão esquecida, como
todos os outros, do código deontológico que proíbe que se façam perguntas a
pessoas que estejam perturbadas e incapazes da serenidade necessária à resposta
(artigo 8.º “(…) o jornalista deve proibir-se de humilhar as pessoas ou
perturbar a sua dor”).
Vara saiu do carro, enquanto apertava nervoso o casaco, murmurava que
aquele era “o pior momento” da sua vida. Não bastou para que ninguém lhe virasse
as costas e desligasse as luzes para o deixar em paz nesse seu luto. Numa das
TVs, passados aqueles penosos dez minutos, alguém teve a decisão peregrina de
voltar ao princípio. “Vamos rever”… mais dez minutos de inglória.
Não tenho por Vara nenhuma simpatia (como já não tinha por Sócrates,
que foi uma vitima de igual ou pior tratamento). Na Renascença uma única vez
divulgámos a fonte que nos tinha manipulado. Dissemos o seu nome. Enfrentámos o
poder de Vara, que na época já era muito, embora só fosse ainda um secretário
de Estado responsável pela Segurança Rodoviária. Chamou-nos mentirosos e nós
devolvemos o insulto e provámos quem afinal mentia.
Isto talvez bastasse para não nos interessarmos muito pela sua sorte
agora. Mas não. O Armando Vara que foi preso é um Armando como nós, que de Vara
já tem pouco.
Já lá vai. Sobretudo esta não é a hora para repisar o vencido.
O Cardeal Patriarca de Lisboa pediu esta semana, na abertura do ano
judicial, honestidade aos jornalistas para que se evitem julgamentos precipitados,
na praça pública, através da comunicação social. Em si mesmo, o pedido podia
ter sido feito por qualquer outra personalidade presente na cerimónia. Marcelo
formulou algo de muito semelhante, ao pedir que não se diabolizassem nem
endeusassem alguns agentes da Justiça, nem se olhasse o andamento dos processos
como quem segue eleições (aqui a indireta era para Joana Marques Vidal e Carlos
Alexandre como potenciais endeusados…).
Acrescentou o Patriarca: a comunicação é um “grande bem”, mas “depende
do sentido de Justiça que realmente se tenha, quer da parte de quem informa,
quer da parte de quem recebe a informação”, pedindo aos jornalistas honestidade
para que não deturpem factos, que não julguem “a priori”, “não recolhendo
fraudulentamente os dados, nem os manipulando depois”.
Um recado que ia direitinho para uma reportagem da TVI, recém emitida,
sobre a forma como a Igreja lida com a questão da sexualidade na sua versão
homo. Independentemente do tema, o que chocou e enlutou boa parte da classe foi
o uso e abuso de métodos a todos os títulos condenáveis pelos próprios códigos
da profissão. Câmaras ocultas para filmar e gravar conversas com profissionais
de saúde, grupos paroquiais de anónimos em busca de ajuda pastoral e, para
cúmulo, uma conversa de direção espiritual entre um jovem supostamente católico
e um padre. Nada que não pudesse revelar-se à luz do dia e com o conhecimento
dos visados, não fora pretender-se embrulhar “o caso” num suposto “secretismo”
inexistente. Aliás, a psicóloga visada aceitou até estar presente para debater
posteriormente, em estúdio, o teor de uma reportagem que a filmara
secretamente, sem que esta o soubesse.
D. Manuel insiste: “Para dar a cada um o que lhe é devido, a Justiça
como virtude básica e como prática judicial tem de incidir particularmente na
qualidade da comunicação, de que afinal todos somos agentes, ativos ou
passivos. Para que em tudo se respeite a todos e ninguém saia lesado. Mesmo
quando for preciso denunciar o mal – e infelizmente não faltam ocasiões para
isso – tenhamos em conta que se trata de pessoas, que nunca perdem a dignidade
essencial que as qualifica.”
Para cúmulo, esta semana a mesma TV reincide e, a propósito da defesa
da qualificação como vitimas de violência doméstica de duas crianças,
devassa-lhes a vida, volta a agredi-las de forma inadmissível. Revela os seus
nomes e recorda-lhes as agressões que sofreram e que foram praticadas entre os
seus progenitores, repete inclusivamente os insultos proferidos pelo pai contra
a mãe, mas, como se isto não bastasse, permite ao agressor utilizar um dos
menores, manipulando-o uma vez mais, para assumir a sua defesa em direto, no
debate que se seguia na TV. E ninguém diz nada. E ninguém diz
"Chega".
O ano judicial começa, em matéria comunicacional, numa semana (mais
uma) triste para o jornalismo – que vive nesta espécie de morte lenta a que o
condena a furiosa luta pelas audiências. É caso para dizer que, atropelados
pela ditadura do entretenimento, podemos enquanto “informadores” desde já
colocar a bandeira a meia-haste. O jornalismo não está a morrer. Está a cometer
suicídio em direto. Com muitos de nós a mover-se, de olhos fechados, em bandos,
titubeantes, como sombras de redações fantasmas.
Opinião de Graça Franco
18 jan, 2019
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