Era inútil. Nunca iria conseguir dormir. Furioso, afastou de cima de si
o edredão sem quase sentir na pele o fresco do quarto e, de luz apagada, abriu
a janela. Aconchegou ao pescoço a gola do casado do pijama e cruzou os braços
sobre o parapeito. Lá fora, quatros andares sob os seus pés, a noite movia-se
ainda, quase secreta, cruzando-se nos faróis dos automóveis, reflectindo a luz
dos candeeiros no alcatrão recentemente lavado pelos trabalhadores camarários e
no bêbedo que em obstáculos invisíveis tropeçava. Fosse outra noite, fossem
outros tempos, teria chamado Laura e ter-se-iam desmanchado a rir pela triste
figura do homem. E, subitamente, o olhar fixou-se no negro do céu, sem que o
visse. Por saber que mentia, que a si mesmo tentava enganar fazendo-o. Noutra
noite, noutro tempo, no espaço tão curto de seis meses antes, ele nunca estaria
encostado ao parapeito de uma janela olhando o ziguezaguear de um bêbedo.
Dormiria. E por dormir, não sentiria àquela hora o corpo de Laura que, porém,
saberia a seu lado. Ambos, serenamente, recebendo os seus sonos e visualizando
os seus sonhos que, pesadelos que fossem, nunca seriam tão maldosamente
definitivos como aquele estúpido acidente que lha roubara.
Depois, a morte súbita da mãe, o seu último reduto familiar, a julgada
eterna confessora das suas mágoas, a sua amiga, o seu porto seguro onde ele
atracava o barco das confidências compensando-a com o escutar, mais ou menos
atento, dos queixumes próprios da idade.
Julgara, também ele, morrer. Não acontecendo, porém, descera a
vertiginosa ravina psicológica que o conduzira a uma inevitável depressão. Os
sonos por dormir, os esquecimentos constantes, o mau humor incessante e o
descurar dos mais elementares cuidados profissionais haviam provocado o resto:
o despedimento.
Vira-se assim sem dinheiro, sem ambições, sem possibilidades de novo
emprego para “velhos” de mais de 40 anos neste país que era o dele. E, quase,
sem amigos. Quase. Porque numa daquelas coincidências que talvez o destino
saiba explicar, reencontrara casualmente Luís, o estranho, o apagado, o tímido,
o maluco que de todos se isolava nos seus tempos de escola. O agora cientista a
quem o amargo da sua vida contou num desabafo, como o contaria a um gato ou um
cão por mais ninguém ter com quem fazê-lo, confessando por fim que já várias
vezes pensara em desistir de tudo, da vida, e fazer uma asneira.
— A sério? – Perguntara Luís depois de o olhar demoradamente e em
silêncio – Então faz. Faz essa asneira. Mas quando a fizeres, executa-a com
dignidade.
E nunca mais aquela frase, contrária aos usuais “deixa-te de parvoíces”
ou “coragem, a vida dá muita volta”, se lhe arredou da mente. Ao ponto de o
contactar de novo e perguntar-lhe que quisera ele dizer com aquilo. E receber,
como resposta, o endereço de um armazém nos arredores da cidade.
A máquina, exposta na nave desse armazém, tinha o aspecto artesanal,
ainda que de dimensão dobrada na largura, de uma guarita de soldado. No seu
interior, repleto de fios entrelaçados e encavilhados como nos antigos PBX,
somente um botão vermelho sobressaía naquele aglomerado de técnica e lata
cinzenta que em nada deixava adivinhar a sua utilidade.
“Trata-se de uma máquina que viaja no tempo”
Olhara em silêncio o antigo colega e considerara que a loucura
alvitrada nos tempos de infância se havia tornado séria. Mas Luís, indiferente
ao seu provável rosto incrédulo, não se detivera e, como se falasse do mais
trivial assunto, continuou.
“Precisamos de ti. E, tanto quanto percebi no nosso encontro, tu
precisas também de nós. Quando digo “nós”, refiro-me a mim, obviamente, e ao
Doutor Klaus Hipólito, cientista alemão de ascendência portuguesa. Juntos, há
muito trabalhamos numa máquina, nesta máquina, que atravesse o tempo ou, para
ser mais específico, a sua inexistência. Diz-me o teu rosto que estamos doidos,
que estamos a viver um sonho de ficção científica, mas, contra isso, devo
dizer-te que essa designação sempre acompanhou os loucos que, no entanto, com
essa loucura fizeram avançar o mundo.”
Fez uma pausa e olhou a máquina, nitidamente com o mesmo olhar com que
se olha um filho.
“Seria para ti fastidioso se me perdesse agora em pormenores
científicos. Pouco entenderias e em nada ajudaria à tua decisão, porque, na
realidade, é isso que esperamos com esta nossa conversa: uma decisão tua”
“Talvez não saibas que nada morre no mundo. Todo o acontecimento se
regista para a eternidade de um modo indelével, ainda que a nós pareça ter
perecido. Incluindo os sons. Vou dar-te um exemplo que assume aqui
extraordinária importância” – fez uma pausa antes de retomar o monólogo de um
modo estranho, nitidamente separando cada palavra – “Tudo, o, que, neste,
momento, te, digo, parecerá, desaparecer, quando, me, calar. Percebeste? Todas
as palavras ditas, dizem, são levadas pelo vento. Mentira. O que acontece é que
todas estas frases descem continuamente para infindáveis ondas que ninguém mais
detectará, mas que, no entanto, continuam vivas. Perplexo? - Sorriu pela
primeira vez – Não fiques, Júlio. E retém a frase de Shakespeare “ Há mais
mistérios entre o céu e a terra do que a vã filosofia dos homens possa
imaginar”
“Pois bem” – continuou – “A máquina que aqui vês dispõe de um botão
vermelho no qual terás, certamente, reparado. Quando o pressionares…”
“Quando ou se?” – Interrompera Júlio pela primeira vez.
“Quanto a isso, já lá iremos. Não me faças perder” – respondeu Luís –
“Portanto, quando o pressionares, a máquina entrará num processo aleatório, de
roleta russa, digamos, e navegará por todos os sons caídos ao longo dos tempos.
Passado e futuro”
“Futuro? Como é isso possível, se o futuro ainda não existe?” –
Perguntou Júlio.
“Tudo existe já, nunca te esqueças disto. Entre nós, aqui neste
momento, corre um universo paralelo que só ainda Einstein conseguiu aflorar.
Ele, o futuro, já cá está. Nós é que o desconhecemos, mas tenho esperança de
que a máquina no-lo dê a conhecer. Por isso, dando seguimento à explicação,
essa navegação por todas as ondas em que pairam inquantificáveis sons, far-se-á
continuamente, até que de novo primas o botão e a máquina se detenha na
pesquisa do tempo, naquela precisa data em que a frase, naquele momento
analisada, terá sido dita. Nesse mesmo instante, a porta abrir-se-á e, lá fora,
esperar-te-á uma época que, em princípio, nunca será aquela que agora deixas.
Estudámos o teu currículo, o teu perfil, e descansámos ao verificar que a tua
paixão pela História e o teu elevado nível cultural facilitaria o
reconhecimento de qualquer Era em que caísses. Para além disso, o teu próprio
nome, Júlio Verde, pareceu-nos premonitório”.
Durante alguns instantes, ficaram em silêncio. Parecia que, aos olhos
de Júlio, muito estava por dizer. Só desconhecia a real dimensão desse “muito”.
Decidiu questionar o cientista com uma pergunta que lhe pareceu pertinente.
“Parece-me que essa máquina, com esse aspecto, não será bem recebida
entre o paleolítico ou Afonso Henriques, Luís XV ou Roald Amundsen”
“Não te preocupes com isso. Ninguém irá vê-la. Ela não existirá no
ponto a que chegar. A sua estrutura molecular não lhe permite sair fisicamente
daqui. É uma sua projecção aquela em que viajarás. Só tu, no momento em que
pisares a terra de outro tempo, serás visível, porque se dará a tua libertação
para lá da composição que ela ostenta.
“Isso significa, nesse caso, que se eu me afastar do local onde ela
pousou, nunca mais a verei”
“Estaria correcta essa dedução, sim. Se nós não tivéssemos solução para
ela. Conseguimos isolar o nervo que transmite ao cérebro o padecimento de um
dente. Nesse nervo, e através de uma simples e eficaz cirurgia, implantaremos
um micro-GPS que continuamente te guiará ao ponto de partida”
“Terei então, na minha cabeça, uma menina a, constantemente, dizer-me
“vire à direita, vire à esquerda?” – disse, sorrindo. Um inseguro sorriso,
enervante por tão nervoso.
“Sim. Quando for essa a tua vontade. Ela, essa tua intenção de
regressar à máquina, despoletará o “acordar” da “menina”
Júlio ficara muito tempo em silêncio. Tinha ainda muitas perguntas a
atrapalharem-se no tráfego do cérebro. Mas uma se impunha. Ou talvez duas.
“Têm a certeza de que a máquina funciona? E quando regressarei?”
Luís suspirou antes de responder.
“A máquina funciona, sim. Treinámos um pastor-alemão, o nosso querido
Whisky, durante anos, para que aprendesse a carregar no botão. Vimo-lo dentro
da máquina quando a porta se abriu e, em consonância com o resultado esperado,
a volatilizar-se no ar no instante em que a transpôs. Nunca mais regressou. Sem
micro-GPS que lhe valha, estará perdido num qualquer século. Estamos,
afincadamente, garanto-te, a trabalhar num modo de poder provocar o regresso à
linha de partida (não esqueças que a máquina continuará aqui) e penso estarmos
muito perto de o conseguir. Se não conseguirmos…”
“Se não conseguirem…?”
“Se não conseguirmos, ou se dá o caso de a máquina parar, por sorte,
entre biliões de possibilidades, nesta nossa data, ou… – engoliu em seco – ou
tu morres por lá. Mas não era isso que procuravas, numa existência que já nada
te diz?”
E por isso aquela insónia, aquele redemoinhar de pensamentos, de
sentimentos, do receio de partir para aquela aventura, mas também da frustração
caso não a aceitasse. Era português, caramba! Não tinha sido a sua raça a
desvendar mundos dentro do seu mundo? Ele tinha à sua frente a possibilidade de
muito mais. A de descobrir mundos extintos e por inventar. Mas tantas perguntas
lhe bailavam no cérebro. As mais simples, por incrível que parecesse. As suas
roupas diferentes, a alimentação, a barba que lhe cresceria, a… . Não! Tinha de
parar por aqui, de se martirizar com dúvidas e medos. Já dissera que sim, já tinha
instalado no nervo dos dentes uma “menina” que, por enquanto, dormia. Muito
mais que ele que, noite dentro, ali estava acordado quando tanto necessitava de
repouso. Porque, logo que o dia nascesse, seria o DIA!
Que nasceu quente apesar de ter sido fria a noite. O sol fervilhava
sobre as cabeças descobertas, um daqueles dias que, ultimamente, quase faziam
de Portugal um país tropical. Quando entrou no armazém, soube-lhe bem o fresco
da nave vazia de tudo, menos de uma assustadora, porque incógnita, máquina. Deu
um grande abraço a Luís e outro a Klaus, um homem afável e meio distraído como
era apanágio dos cientistas. Apeteceu-lhe chorar quando se viu dentro da
máquina, mas não valeria a pena. Para além de nada haver a fazer quando a porta
se fechou, o calor desmesurado que parecia roubar-lhe o ar secar-lhe-ia as
lágrimas num instante. E, de repente, tudo era silêncio, tudo era metal, tudo
eram fios e medos e um botão cujo vermelho pedia uma mão firme sobre ele.
Olhou-o. Sentiu medo, angústia. Desistir? Não. E, sobretudo, evitar pensar.
Estendeu o braço e, fechando os olhos, pressionou-o. E, contrariamente ao que
esperava, nada aconteceu. Nem um estremecer, nem uma ligeira vibração sentiu
nas paredes da máquina. Nada. Para além de um suave silvo, um quase ligeiro
assobio constante que provavelmente se manteria até que voltasse a pressioná-lo
de novo. Teria aquela geringonça avariado aquando do funcionamento com o
animal? Se não, em que datas aleatórias navegaria ela agora? Teria ele
preferência por alguma época, segundo os seus conhecimentos de História? Que
importava isso neste momento, se não podia escolhê-la? Se somente podia
pressionar de novo o botão, detendo a máquina do mesmo modo que a pusera em
movimento, mas sem que, contudo, a sentisse mover-se. E de novo os seus dedos
calcaram a cor vermelha do botão. O silvo, gradualmente, foi-se esvaecendo até
devolver o silêncio só interrompido pela porta que se abria. Aproximou-se dela
e viu que, lá fora, e para além do frio que lhe chegava, chovia torrencialmente.
Lembrou-se então de quão importantes são as pequenas coisas. Nem um
guarda-chuva trouxera.
João J. A. Madeira
Do blogue (Acrescenta um ponto ao Conto)

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