Nesta semana, a reboque da vinda de uns juízes famosos por boas e más
razões às Conferências do Estoril, falou-se ainda mais de corrupção.
Poucos fenómenos minam mais os alicerces de uma democracia do que a
corrupção. O facto de existirem indivíduos e organizações que, de forma
ilegítima e criminosa, vendem ou compram o interesse da comunidade em benefício
próprio revolta qualquer cidadão, destrói a confiança nas instituições e, em
situações-limite, pode pôr em causa o regime.
É, assim, normal e aconselhável que o combate a este flagelo seja
travado sem tréguas e utilizando todos os meios disponíveis.
Talvez por existir no nosso país uma boa perceção dos danos que a
corrupção provoca, o combate a esse cancro social tem tido bons resultados.
Excelentes? Certamente que não, mas o caminho percorrido tem sido muito
apreciável.
Bem sei que não há nada que dê tanta popularidade quanto fazer discursos
dizendo que a corrupção é o maior flagelo da nossa comunidade. Mas não, não é.
Aliás, não há político que não tendo propostas para os males endémicos
do país - seja o crescimento económico, seja o sistema de justiça, seja a
desigualdade, seja a baixa produtividade, sejam as baixas qualificações, seja a
emigração - não apareça com o enésimo pacote legislativo contra a corrupção.
Se há crime em que se deram passos gigantescos para o prevenir e
combater foi este. Tudo o que se fez a nível fiscal, de controle de circulação
de capitais, de acordos entre países, de consciencialização das populações para
os verdadeiros danos para a comunidade desse crime, de legislação, de
investimento em meios para o combate, da criação de tribunais especiais, é
prova disso. Até em aspetos aparentemente pouco relevantes como a obtenção de
licenças, a marcação de consultas médicas ou escrituras, as matrículas em
escolas houve uma enorme mudança - para não falar dos da grande corrupção que
são do conhecimento geral. E desengane-se quem considere estes aspetos
irrelevantes, são sinais fortes de mudanças estruturais na forma de pensar que
fazem que a grande corrupção seja apreendida de outra forma e condenada com
mais veemência.
O caminho percorrido é suficiente para que estejamos sossegados e a
corrupção seja algo que não nos deva preocupar? Claro que não. É uma luta em
que não pode haver um segundo de descanso.
Tem aparecido, no entanto, uma espécie de indústria paralela, muito
popular, que se baseia na corrupção. Melhor, na conversa sobre a corrupção. Não
é preciso ler caixas de comentários ou páginas de Facebook para encontrar gente
que defende que todos os males do nosso país são provocados pela corrupção. Vai
do mais sisudo académico ao político capaz de cheirar o gosto de sangue de
parte da população, passando pelos nossos conhecidos colunistas--taxistas que
exploram o mercado do "isto anda tudo a gamar" e do vale-tudo para
condenar quem eles já julgaram no seu tribunal - e, claro, nem vale a pena
falar dos tabloides que exploram este filão.
Em parte, o discurso sobre a corrupção tem sido feito muito mais com
intuitos eleitoralistas ou de obtenção de popularidade fácil do que
propriamente com o intuito de combater esse flagelo.
Mistura-se tudo. Corrupção com gestão negligente, crimes de colarinho
branco com incompatibilidades, rumores com factos, suspeições com condenações.
Não se hesita em propor soluções antidemocráticas e violadoras do Estado de
direito, como se a negação dos princípios que o definem não fosse o fim da própria
democracia e do Estado de direito.
Um cocktail que confunde qualquer cidadão e em que nunca se sabe muito
bem se quem se hasteia em justiceiro de teclado busca popularidade fácil, se é
ingénuo ou se tem legítimas preocupações embrulhadas de forma atabalhoada.
O facto é que estes discursos fazem o seu caminho e fazem crescer a
perceção de que vivemos numa espécie de pântano corrupto. O caldo cultural que
pode levar ao aparecimento de um populista que consiga vender a imagem de que
vivemos nesse pântano, e que nos resgatará à custa do poder que a sua impoluta
moral merece, é muito mais fruto desses discursos e da verdade alternativa
assim ajudada a construir do que aquilo que efetivamente é a realidade. Há algo
que os cultores da conversa do pântano têm razão: é notável ainda não ter
aparecido em Portugal alguém que colha os frutos que eles ajudam denodadamente
a semear. Melhor, não terem aparecido ainda políticos que consigam convencer as
pessoas de que só uma república de homens justos nos resgatará do suposto
inferno de roubalheira em que, alguns dizem, vivemos. Infelizmente, no poder
judicial, demasiada gente já ultrapassou barreiras que não são transponíveis em
democracia e, neste caso, é difícil de saber quem contaminou quem com a ideia
de que vivemos no tal inferno.
Devem ser postos à disposição das autoridades todos os meios que
permitam combater estes crimes. Mais especialistas em matérias como
fiscalidade, circulação de dinheiros, esquemas fraudulentos, etc., etc. e,
claro, devem ser bem pagos. No fundo, tentar ter meios idealmente tão bons como
os dos criminosos. Mas há barreiras que não podem ser ultrapassadas: as que
dividem um Estado de direito dos que não o são. Propostas como legislação sobre
o enriquecimento ilícito ou a delação premiada à brasileira são claros limites
que não podem ser transpostos.
Não será o gigantesco ruído que tem sido feito que fará diminuir a
corrupção ou os crimes de colarinho branco, e muito menos a subversão dos
princípios do Estado de direito ajudará. Pelo contrário, nem a confusão nem a
selvajaria ajudaram o que quer que fosse a melhorar.
No DN de 4 de Junho de 2017
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