Um amigo, bom e experimentado repórter, disse-me, um dia: "Nunca
estendas o microfone a um futebolista que sai do campo para ser
substituído." Como raramente estendi um microfone e todos os jogos que vi
foram quase sempre sentado, ora em bancada ora em sofá, percebi que o velho
jornalista estava a debitar um conselho geral. Ele ainda me disse: "Depois
de se andar a correr 70 minutos o cérebro está demasiado oxigenado, ou de
menos..." Aquela dúvida entre duas situações opostas - vinda dele, que mais
depressa dissertaria com exatidão sobre isquemia cerebral, e assim -
confirmou-me que só aparentemente estávamos a falar de as substituições no
futebol serem vividas com a cabeça a não funcionar como deve ser... O meu amigo
falava duma lei universal para quem pergunta com a vontade de ouvir uma
resposta autêntica.
Autêntica, isto é, dada por alguém sabendo o que está a dizer e em
condições de saber que, depois de dita para um jornalista, a resposta ganha
asas e atinge ouvidos mal-intencionados que eu sei lá. Erra o leitor que pensa
que esta minha crónica é sobre assuntos de jornalismo, normas e conselhos para
uma corporação. Também é, mas o sujeito da crónica é o abusado pelo jornalista.
O indivíduo a quem se aponta um microfone, sem ser prevenido de que aquilo
dispara.
Quem diz futebolista, diz peixeira. Mais abaixo, publico um discurso
recente de uma mulher para jornalista, testemunho dado com cara e nome. Não são
imagens como as do ex-ministro Miguel Macedo, exposto durante um interrogatório
judicial, falando para uma câmara que ele pensava ao serviço da lei mas acabando
por fornecer um esgoto. Essas imagens, a do ex-ministro, são fruto de duas
anormalidades: a irresponsabilidade judicial e a canalhice de jornalistas.
Essas, embora tão feias, de certo modo tranquilizam-nos, porque são anomalias,
desvios. Mas, o outro, o discurso com que a peixeira foi apanhada na curva, é
mais grave. Porque foi publicado e transmitido, em televisão e site de jornal,
sem intenção de a ferir e sem se enganar a senhora com manhas. Coisa
aparentemente e, quase de certeza, com vontade de ser limpa. Tanto que poderia
ter sido publicada e transmitida por qualquer outro jornal português e
televisão. Neste meu jornal também. E é esse o ponto: banalizou-se não nos
interrogarmos sobre o que estamos a falar quando estamos a falar.
A comerciante e a sua carrinha de distribuição de peixe e fruta
passaram pela estrada N-236 naquele dia em que houve ali tantas mortes. Dias
depois, sempre a trabalhar, voltou ao local e falou para a câmara e para os
microfones. A situação não configura o exemplo do futebolista apanhado com os
bofes de fora, com mais ou menos oxigénio no cérebro. Mas, eu já o disse,
aquele exemplo do meu amigo não era só para a vizinhança das quatro linhas do
relvado. A senhora testemunha de forma emocionada, soluça por vezes. Não, ela não
estava a falar de postas de pescada, mas de coisa sua, funda. E disse o que não
devia.
Ela disse, cara filmada, nome na legenda, com a carrinha que há de
continuar a parar entre os seus amigos e clientes, narrando como conduziu na
estrada entre o fumo e o fogo. Disse: "Foi então quando entrei naquela
fúria. A partir daí foi tudo quanto eu encontrava pela frente para me tentar
salvar. Lembro-me de bater em vários carros a arder [palavras embargadas,
soluço], não sei se os acabei de matar. Mas se os acabei de matar peço... peço
desculpa porque ali era salve-se quem pudesse."
O vídeo, no jornal onde foi publicado, puxou para título o discurso
direto, entre aspas, assim: "Se os acabei de matar peço desculpa, mas ali
era o salve-se quem puder!" É quase exatamente o que a senhora disse, com
uma emenda talvez gramaticalmente melhor. Em vez de "ali era salve-se quem
pudesse", que ela disse, escreveu-se "ali era o salve-se quem
puder." Interessante o cuidado na formulação gramatical quando se
negligenciou, ou pior, deu-se demasiada atenção - até se chamou para título -
ao que foi dito.
A senhora disse o que quis dizer, certamente sem ter sido coagida e sem
ter sido endrominada para o dizer. Não é esse o ponto. E falou dias depois do
acontecimento, sem estar no calor da ação, é certo. Mas não falava só para as
amigas e clientes, algumas que até sabem quanto ela foi valente e podiam
recolher-lhe as palavras, mesmo as perigosas, com a sabedoria que se reserva à
conversa entre próximos.
Não, ela não falava para os seus. Ela estava a falar a um microfone e
uma câmara - para um palavrão, multimedia - que serviriam de extraordinário
altifalante ao que ela dizia. Sobretudo o indizível. A mulher que falava estava
ciente dessa dimensão? E das traduções todas que as suas palavras teriam? E das
palavras que mais especialmente seriam escolhidas pelos ouvidos estranhos (e
para título, pelos jornalistas)? Saberia ela que com os aparelhos que lhe
puseram à frente, às palavras o vento não leva, duram mesmo depois de se
esquecerem os acontecimentos que as motivaram?
Enfim, a senhora interrogou-se com a prudência devida? Sabia de tudo,
como todas as nuances com que seria ouvida, do que estava a falar quando estava
a falar? Duvido. Mas os jornalistas sabiam. Todos, na cadeia que levou da
recolha das palavras até à publicação e difusão, sabiam do extraordinário
testemunho que aquilo era.
E, sabendo, deviam, vou dizer uma iconoclastia para o negócio: deviam
apagar. Eu apagava as palavras da senhora. O meu critério é simples: se fosse um
dos meus a dizer aquilo, eu apagava.
(Um é tudo)
Ferreira Fernandes no DN
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