É a própria direção do CM, ao defender a publicação do vídeo como
"jornalismo do melhor, sem medo, livre", a autoacusar-se de total
desrespeito pelas regras, alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que
esta mesma direção é responsável por "um historial importantíssimo" é
dizer "rouba mas faz". Por outras palavras, o CM pode ser corrupto e
corromper tudo, desde que faça o trabalhinho.
Não: publicar um vídeo que circulava nas redes sociais, de um rapaz a
meter a mão nos jeans de uma rapariga enquanto à volta, num autocarro, outros
rapazes e raparigas incitam e aplaudem, não é jornalismo. Um vídeo não é uma
notícia. Notícia - porque tem interesse público - é informar sobre existência
do vídeo, perguntar às autoridades se estão a investigar, procurar saber que
autocarro era aquele, se o motorista sabia, tentar falar com alguns dos
presentes ou até com os protagonistas, enquadrar o ocorrido em termos legais -
pode ser crime? Se sim, qual? No caso de a jovem ser menor, quais as
implicações? Filmar aquilo é lícito? E difundir?
Tentar responder a estas perguntas básicas seria jornalismo. Mas
acarretaria trabalho e tempo. E desde logo tornaria evidente que filmar sem
autorização dos filmados e difundir sem ela é crime (artigo 199.º do Código
Penal, eventualmente associado ao 192.º, devassa da vida privada), agravado
(197.º) se ocorrer por meio de comunicação social, visar o enriquecimento do
agente ou causar prejuízo a outra pessoa. Mais: que no caso de a jovem ser
menor o filme entraria na categoria pornografia de menores (176.º). Ou seja:
fazer jornalismo implicaria tornar claro que ao publicar o vídeo o CM estaria a
incorrer em vários crimes. Informar não seria compatível com publicar. Portanto
publicou-se. E publicou-se aquilo que o CM, apesar de nada ter feito para se
inteirar sobre o sucedido, apresentou como sendo o filme de um crime:
"Rapariga filmada e abusada no Porto e ninguém fez nada."
Publicitou-se o vídeo de um crime sexual, revitimizando sem piedade aquela que
se apresenta como vítima, obrigada a rever o ocorrido e a confrontar-se com os
comentários do público. Difícil encontrar adjetivos para tanta crueldade, para
a perversidade de, ao mesmo tempo, escrever "e ninguém fez nada".
Acresce que, ao contrário do que a direção do CM pretende na resposta
às críticas, quando o vídeo foi colocado no site todos os rostos estavam
nítidos à exceção do da rapariga em causa - e mesmo essa seria identificada por
quem a conhecesse. Só mais tarde as imagens foram tratadas, desfocando por
completo os intervenientes.
Óbvio que, para além de incorrer nos vários crimes enunciados, o CM
violou praticamente todas as regras jornalísticas. Inundada de queixas, a
Entidade Reguladora para a Comunicação Social instaurou um procedimento; o
Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas censurou o CM e apelou a que
retire o vídeo do site (ainda lá está, contabilizando 15 889 partilhas - um
êxito). Mas a Comissão da Carteira de Jornalistas, que tem o poder de zelar
pelo cumprimento da lei que rege a profissão e cujo presidente foi tão lesto a
gritar crime quando Ronaldo mandou o micro da CMTV ao lago, está como morta. E
da PGR nem um pio. O facto de ninguém lhes ter perguntado nada ajuda: não houve
um único artigo noticioso nos media portugueses - um único - sobre o assunto.
Deve ser porque não tem importância nenhuma, não é?
Mesmo na opinião publicada impera o silêncio. Cinco dias depois
(escrevo no domingo) contei apenas duas de jornalistas no ativo. Destas, a mais
assertiva é a de Diogo Queiroz de Andrade, no Público: "Aquilo não é
jornalismo", diz, afirmando que o desrespeito pelas regras evidenciado
pelo CM na publicação do vídeo é, não uma exceção, mas o método do projeto. No
mesmo sentido vão os colunistas Daniel Oliveira, no Expresso, e Pedro Marques
Lopes, no DN: verberam a conivência silenciosa que tem, dos jornalistas à
justiça e políticos (incluindo os que escrevem e colaboram com CM e CMTV),
passando pela regulação, permitido, credibilizado e abençoado os desmandos do
CM. E, notável, no próprio CM, Ricardo Valadas, presidente da Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ, repudia a publicação
do vídeo, caracterizando-a como "violência gratuita",
"exploração comercial" e "venda de conteúdo a todo e qualquer
preço".
É tudo. E é normal. Porque quem ataca o CM sabe o que o espera. Veja-se
a tese de João Miguel Tavares: sim, o CM "errou" ao publicar o vídeo
mas é "abusivo" caracterizar o projeto a partir deste e outros
"erros". Porquê? Porque, diz JMT, tem "um historial
importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da
corrupção". Sucede que é a própria direção do CM, ao defender a publicação
do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo, livre", a caracterizar
o seu entendimento e prática e autoacusar-se de total desrespeito pelas regras,
alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é
responsável por "um historial importantíssimo" é dizer "rouba
mas faz". Ou seja, não interessam os meios, quantos atropelos comete,
crimes, atentados éticos, vidas destruídas. Por outras palavras, o CM pode ser
corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho. Pode até financiar-se
à custa de vídeos de miúdas a ser abusadas, e ai de quem o atacar por isso: JMT
e o CM cá estão para nos acusar de conluio com corruptos e "ódio".
Perguntou Bruno Nogueira, no Mata-Bicho da RDP: se não se reage a
sério, com consequências, a isto, vai-se reagir a quê? Vamos esperar que o CM
mate e viole para pôr os vídeos no site?" Boa pergunta. E a resposta é:
sim, vamos.
Nota: Tenho, a correr nos tribunais, processos contra a Cofina, empresa
proprietária do Correio da Manhã e da CMTV.
Sem comentários:
Enviar um comentário