Desta vez foi um vídeo em que uma rapariga parece ser sexualmente
agredida. Apesar do clamor de indignação que ecoou nas redes sociais, ninguém
pode dizer que tenha ficado especialmente surpreendido por o Correio da Manhã o
ter exibido. É provável que esse título tenha descido mais um degrau no pântano
de imundície em que vive, mas quem conhece a atividade do diário e do canal de
televisão do mesmo nome sabe que, no fundo, é mais do mesmo.
Como salientou o Diogo Queiroz de Andrade, no Público, o CM não é um
produto jornalístico. De facto, o que o CM e a CMTV fazem não é jornalismo.
Disfarçados de jornalismo, exploram uma atividade que é a negação deste e que
tem como núcleo central a insídia, a difamação, a distorção, o voyeurismo, o
desprezo pela privacidade e pelos mais básicos direitos de personalidade, o
ataque ao Estado de direito e a pura mentira. Um jornal ou outro meio de
comunicação social pode errar ou cometer atropelos éticos; o Correio da Manhã
faz do atropelo ético e da infâmia o seu negócio.
Como as pessoas que dirigem editorialmente os produtos têm carteira de
jornalista e como aquilo vem disfarçado de jornalismo, seria de supor que os
jornalistas e as suas organizações representativas já tivessem há muito tomado
posições firmes contra a confusão entre quem faz jornalismo e quem o abastarda,
mas nem mais este episódio faz crer que algo aconteça. Li dois artigos de
jornalistas no ativo, o já citado, outro de João Vieira Pereira e uma nota de
condenação do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Das pessoas
que têm mais responsabilidades nos maiores órgãos de comunicação social nem um
pio. Não admira: o diretor dos produtos CM falou, a convite, no congresso dos
jornalistas. São assim os próprios que acham que o responsável editorial por
aqueles esgotos a céu aberto é um deles.
Mas, se muita gente ficaria razoavelmente de bem com a sua consciência
se pudéssemos passar todo o ónus para os jornalistas, a culpa de os produtos CM
terem ultrapassado todos os limites está longe de ser só deles.
A responsabilidade da impunidade com que o CM polui tudo vai muito para
além do silêncio conivente e medroso da classe jornalística.
Em primeiro lugar, temos os que passam sempre entre os pingos da chuva
quando o CM viola direitos, pratica pulhices, despreza o segredo de justiça,
exibe escutas, mostra interrogatórios judiciais ou manipula a opinião pública a
seu bel--prazer: os acionistas da Cofina. Nomeadamente o seu acionista
principal e presidente do conselho de administração, Paulo Fernandes. É este
senhor, restantes membros do conselho de administração e acionistas, que
promove o modelo de negócio CM; são eles que lucram quando se traumatiza ainda
mais uma rapariga, quando se propaga uma mentira, quando se invade a
privacidade de alguém. São eles os campeões do projeto. Os diretores são só
serviçais contratados para um trabalho sujo e que claramente o fazem com denodo
e entusiasmo.
Depois, temos quem no poder judicial colabora com o pasquim para
promover condenações na praça pública ou, simplesmente, olha para o lado mesmo
quando as ilegalidades o põem em causa. São bons exemplos as sistemáticas
violações ao segredo de justiça em que se chega ao requinte de passar na
televisão do CM gravações de interrogatórios feitos no dia anterior.
Em terceiro lugar, homens e mulheres com relevância e responsabilidades
acrescidas na comunidade que colaboram com os produtos CM. Gente que é
contratada com o intuito de tentar polir a imagem do CM e da CMTV. Pela sua
especial responsabilidade e pela consideração que me merecem destaco Fernando
Medina, Rui Moreira e Assunção Cristas. Como nenhum jornalista lhes perguntou,
pergunto eu: estarão confortáveis com a associação dos seus nomes às
poucas-vergonhas que periodicamente aparecem no jornal e canal de televisão onde
colaboram? É-lhes indiferente que as suas crónicas ou participações televisivas
apareçam ao lado daquele vídeo, a credibilizar a sua difusão? Não se sentem uns
colaboracionistas ao pactuar com o que há de mais vil?
Em quarto lugar, a classe política e a esmagadora maioria de quem tem
acesso aos media. O silêncio sobre o negócio do CM e da CMTV é ensurdecedor. Os
comentários são feitos à boca pequena, mas quase ninguém é capaz de dizer alto
e bom som o que diz entre portas. Particularmente os políticos, que sabem
melhor do que ninguém os danos que o CM e a CMTV causam à comunidade. Convivem,
aliás, com desvelo com quem faz aquilo. Ou porque acham que podem ter vantagens
ou, muito simplesmente, por cobardia. Sabem que uma palavra contra o CM pode
dar origem a uma primeira página com aspetos da sua vida privada, com uma
campanha difamatória cheia de meias-verdades e insinuações ou tão-somente uma
mentira. E, claro, quem denuncia o CM só pode ser um defensor dos corruptos ou
um agente da concorrência.
Por último, todos os que fazem do CM um produto muito vendido. Os que
gostam de olhar pelo buraco da fechadura, os que pactuam com a difamação, com a
mentira, com o absoluto nojo que é, por exemplo, a exibição daquele vídeo. Não
devia ser preciso, mas façamos a pergunta: e se fosse a sua filha? E se fosse
você o caluniado? E se fossem as suas conversas privadas?
Vendo que os jornalistas nada fazem para defender a dignidade da sua
profissão, que políticos e pessoas com relevância na comunidade ou colaboram ou
assobiam para o lado, que o poder judicial nada faz, que o poder político finge
que nada se passa, é só mesmo a cidadania a última esperança.
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