Eu estava com pressa, ia de mala para Washington, quando fiz sinal ao
táxi, no Saldanha. Ele parou mas o velho taxista baixou o vidro da janela como
quem não quer ganhar uma bandeirada: "Não posso levá-lo, chefe. Tenho de
ir para casa, estão a bombardear tudo, não ouviu?" O rádio do carro falava
de ataques. "Não está a ouvir? Ataques por todo o lado e a minha mulher
que não responde...", ele tinha o telemóvel na mão, tremia e fazia mais
uma tentativa. Eu estava inclinado para a janela, mala ao lado e a precisar de
ir rapidamente para a Portela. Ele tinha ar desamparado e apontava-me para o
rádio e o seu noticiário sobre ataques... cibernéticos. Pois.
Pus voz de chefe: "Nada a ver, homem! Nem bombas, nem ataques, nem
coisa nenhuma! Abra--me a mala do táxi que já lhe explico." O meu velho
taxista precisava era de um aconchego, cedeu, abriu a mala e dispôs-se a ouvir
uma boa explicação para aqueles estranhos ataques massivos que, afinal, nem
guerra eram. Ele queria tanto que eu lhe desfizesse o medo que aceitou levar-me
ao aeroporto. Embora reticente: "Deixe-me só tentar, outra vez, falar com
a patroa..." Que não!, mandei eu, não incomode a senhora porque não há
razões para isso, eu explico-lhe tudo...
E expliquei, sem entrar em cibernéticas nem bitcoins. Ao ouvir
"piratas informáticos", ele assustou-se com a primeira metade e não
ligou à segunda, tateei os termos a usar e foquei-me: tem computador?
"Não", abanou ele a cabeça, olhando-me pelo espelho. Então, está a
salvo, e como a sua senhora também não tem computador (aqui, arrisquei, mas
acertei, ele voltou a abanar a cabeça), então, está tudo bem. Senti-o mais
calmo, a ele, e a mim também - já íamos na Rotunda do Relógio. Última dúvida do
homem: "Eles entram pelo país dentro, já viu no Martim Moniz?"
Vesti-me outra vez de pastilha ansiolítica: amigo, isto não é de gente que está
cá, pode ser até um russo que está na Rússia e me entra pelo computador...
Tínhamos chegado, recuperei a mala, voltei à janela, paguei (5 euros de
gorjeta) e ouvi do velho sentado: "Não foi desta, mas um dia..."
Quando me despedi, estava a telefonar à mulher.
Já vos disse, eu ia para Washington, onde trabalho como mordomo na Casa
Branca. Precisava de lá estar para o encontro de Donald Trump com o ministro
russo dos Negócios Estrangeiros. Calma, leitores apressadinhos, não venham
estragar-me a crónica. Sim, eu sei que esse encontro foi quarta-feira da semana
passada, 10, e os ataques cibernéticos aconteceram depois disso, no fim de
semana. Mas era o que mais me faltava, com meros argumentos de calendário
tentarem dar--me cabo da crónica! Julgam ter--me apanhado na curva: "Se
você parte de Lisboa a 12, ou 13 ou 14, como chega a Washington para um
acontecimento a 10 de maio, diga lá?" Digo: a sério, querem que com um
mundo destes eu vos conte uma história com lógica?... Bom, como eu estava a
dizer, cheguei a Washington para trabalhar. E agora deixem-me trabalhar.
No princípio do mês, Angella Reid, a mordomo da Casa Branca, foi
despedida (vão lá ao Google ver se não é verdade). Então, fiquei eu com o
emprego, em part--time. Quando Trump tem uma coisa importante, geralmente
telefona-me e eu apareço, fui contratado para servir bebidas. Foi assim no
passado dia 10, uma coisa "com russos" - e ao telefone Trump não
adiantou mais. Esperei-os, pois, no Salão Oval, com a água do costume para o
presidente e uísque americano para as visitas. Não fiquei admirado quando vi entrar
o ministro Lavrov e o embaixador russo Kyslyak, mas fiquei espantado com o
palito.
Donald Trump tinha um palito nos lábios! Os três sentaram-se naqueles
cadeirões que vocês conhecem dos filmes e das séries. Os russos, lado a lado,
nos estofos claros, o presidente num daqueles às riscas azuis e branco sujo -
que me pediu para ajudá-lo a arrastar para ficar junto ao ministro Lavrov. E
sempre sem largar o palito. Até então eu ainda pensei que ele, confundido,
pensava estar a homenagear o Yul Brynner, ator de origem russa, pensando que
ele usava um palito, sei lá, no Rei e Eu ou no Dez Mandamentos, quando quem
usava um palito era o Sylvester Stallone, em Cobra. Mas quando arrastávamos o
cadeirão, o presidente piscou-me o olho. Entendi. E fiquei assustado.
Quando fiz a entrevista para mordomo da Casa Branca, tinha de
apresentar um documento sobre o que se pensa, cá fora, da América. Levei um
antigo vídeo dos Gato Fedorento sobre o terrorismo internacional e a isso devo
o emprego. O presidente Trump adorou o analista Gajo de Alfama, interpretado
pelo Ricardo Araújo Pereira. O Gajo de Alfama que tinha um vizinho que esteve
imigrado nos Estados Unidos muito tempo ("e que sabia, porque eles lá
dentro sabem, só que depois isso não passa cá para fora"), e que, de
palito na boca, desvendava o segredo militar americano: a bomba que ia lá pelo
cheiro a chamuça. "O Gajo de Alfama foi o Kissinger que eu nunca vou
ter!", lamentou-se Trump, quando me contratou.
Surpreso, naquela quarta-feira, no Salão Oval, Casa Branca, Washington,
vi irromper um pintas lisboeta. O Gajo de Alfama, de melena loura, a soprar coisas
ao ministro russo Lavrov, batendo--lhe no joelho com a mão direita: "Os
gajos, Serguei, estão a preparar uma bomba com computadores. Carregam no delete
e rebenta tudo!" O Trump de Alfama tirou o palito da boca, esgrimiu-o no
ar: "Eu sei porque tenho uns amigos, que não te posso dizer quem
são..." Piscou o olho, com a boquinha fez I de Israel, com o dedo apontou
o sexo e com a mão imitou cortar o prepúcio: "Esses." E continuou:
"Eles têm um gajo no Iraque, em...", baixou a voz, "começa em M
e acaba em L, e que lhes conta tudo mas não te posso dizer mais." O palito
viajou do canto direito da boca para o esquerdo. Nova mãozada no joelho de
Lavrov: "Está bem, tem dois ss no meio."
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