Esta semana, temos Oliveira Costa, chocolates Milka e quatro queijos de
cabra. Não é uma receita para uma salada. É apenas jurisprudência
Esta semana, o país exorcizou - ainda que parcialmente - um fantasma: o
BPN. Esse mesmo. O banco que nos custou qualquer coisa como cinco mil milhões
de euros. Em primeira instância, o tribunal condenou a maioria dos arguidos a
penas de prisão. O fundador/ex-presidente e rosto da instituição, José Oliveira
Costa, apanhou a pena mais pesada: 14 anos de cadeia. Neste processo, o crime
de burla qualificada foi imputado a vários arguidos. Isto é, no fundo,
tratou-se de desvio de dinheiro do próprio banco.
Mas, ao nível dos conceitos de direito, o pessoal do colarinho branco
não furta nem, utilizando a linguagem popular, rouba um banco. Isto são crimes
de gente pobre, indigente. Um finório burla um banco. Porque, segundo a
doutrina, ao contrário do furto e do roubo, que podem ser praticados por
qualquer rapazola, a burla exige um "especial requinte fraudulento",
"uma mentira qualificada", uma "astúcia", um
"ardil". Talvez por tudo isto é que o julgamento tenha demorado seis
anos.
Mais sorte do que Oliveira Costa teve "Manuel", serralheiro
de profissão, que em março de 2007 foi apanhado a furtar no Continente do
Colombo quatro chocolates "Milka", no valor de 4,85 euros (processo
7216/2008). Depois de identificado pela PSP, o processo lá foi para o
Ministério Público, que o acusou por um crime de furto simples. A acusação fez
uma descrição crua dos factos: "Já no seu interior [do Continente],
retirou de um dos expositores um (1) chocolate Milka caramelo, no valor de euro
1,09 e quatro (4) chocolates Milka, no valor unitário de euro 0,94 e total de
euro 3,76. Tudo no total de euro 4,85. Depois, deslocou-se para a zona das
caixas de pagamento, onde passou sem efetuar o pagamento dos referidos
artigos." Quem não esteve para se chatear com isto foi uma juíza de primeira
instância que, em despacho, recusou a acusação, dizendo estar em causa uma
"coisa furtada de valor diminuto" e por se "tratar de um género
alimentício, é destinado à satisfação imediata e indispensável de uma
necessidade do arguido".
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Talvez indignado, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da
Relação de Lisboa, aceitando o argumento do valor diminuto, mas rejeitando a
tese da satisfação de uma necessidade, porque os chocolates até nem "são
sequer são um bem alimentício de primeira necessidade". Isto na opinião do
senhor procurador, claro. Provavelmente, diabético.
Analisando os factos do ponto de vista do "homem médio"
(conceito utilizado nos tribunais para designar os cidadãos não licenciados em
Direito), o juiz desembargador Carlos Almeida rejeitou por completo a tese do
Ministério Público. Então um chocolate não pode ser um bem para satisfação
nutricional? Pode: "O ser indispensável para a satisfação da necessidade
nutricional não requer que o alimento seja um bem alimentício de primeira
necessidade. São coisas completamente diferentes. É apenas necessário que se trate
de um alimento". Para o juiz desembargador, o argumento, do procurador,
"a não constituir qualquer resquício de um moralismo injustificado",
introduzia um requisito adicional ao que diz a lei. "Por certo que se em
vez dos cinco chocolates o objeto do crime de furto fossem cinco latas de
conservas, de valor equivalente, não se colocaria a questão", concluiu
Carlos Almeida no acórdão de setembro de 2008. E muito bem: cada um come o que
gosta.
Este tipo de crimes é conhecido nos tribunais como "furto formigueiro",
o qual estava expressamente previsto, por exemplo, no Código Penal de 1982. Mas
se quatro chocolates foram considerados, em Lisboa, como uma necessidade, o
Tribunal da Relação do Porto, em 2006, teve um entendimento diferente
relativamente a outro alimento. Uma vez mais, um homem foi acusado pelo crime
de furto simples. Em causa estavam quatro queijos de vaca (processo 0611764).
Deduzida a acusação, o juiz de instrução recusou dar andamento ao processo,
argumentando estar em causa o tal valor diminuto do produto do furto e um bem
alimentício.
Também neste caso, o Ministério Público recorreu para o Tribunal da
Relação. E, em abril de 2006, os juízes desembargadores Manuel Moreira, Manuel
Braz e Luís André da Silva alteraram a decisão do colega de primeira instância,
ordenando a realização do julgamento. E declararam: "Não se percebe como é
possível afirmar, sem outros elementos, que quatro queijos de vaca se
destinassem a satisfazer uma necessidade imediata do agente (!?), pois que o
número é perfeitamente desadequado, o que afasta o imediatismo da
necessidade".
Ou seja, se o juiz de Lisboa se estava a borrifar para os diabetes do
arguido, no Porto a justiça tem uma dimensão de saúde pública. Toda a gente
sabe que quatro queijos comidos de enfiada provocam colesterol. E roubar um
banco?
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