Em maio e no verão de 1944, na França libertada, a turba dos valentes
da 25.ª hora rapavam o cabelo às mulheres que tinham dormido com soldados
alemães.
Christian Rossi ainda deve vender porcelanas pelos mercados da Provença
francesa, tem agora 65 anos. Os jornalistas procuram-no, há décadas que é
assim, e de vez em quando talvez o encontrem. Talvez na feira de Manosque, com
os Alpes ao fundo, talvez em Sète, a do cemitério que olha o Mediterrâneo,
talvez no primeiro fim de semana de cada mês na Canebière, no velho porto de
Marselha, porque Christian anda por aí, a prova é que os jornalistas sabem que
ele faz bricabraque de louça branca.
Mas o certo é que ninguém o fotografou ou lhe arrancou palavras
públicas. As últimas que se lhe ouviram, completava ele 21 anos. Nesse tempo
era quando se atingia a maioridade, e isso é importante para esta história.
Disse Christian aos jornalistas, em 1973: "As recordações que ela me
deixou, foi a mim que deixou, não tenho de as contar. Sinto-as. Vivi-as, eu. O
resto, as pessoas sabem: era uma pessoa que se chamava Gabrielle Russier.
Amávamo-nos, meteram-na na prisão, ela matou--se. É simples."
Depois, silêncio. Quer dizer, o silêncio de um dos protagonistas de
assunto geralmente a dois. Porque sobre l"affaire, o assunto, tem havido
um belo e triste fascínio - e talvez mais do que isso. O que não deixa de ser
natural porque o epílogo, a morte de Gabrielle, aconteceu no mês seguinte,
setembro de 1969, a um homem ter dado, pela primeira vez, um pequeno passo
sobre a Lua.
Em maio de 1968 a França era só imaginação, e procurava a praia sob as
pedras da calçada. Nas manifestações de 68, Gabrielle Russier e Christian Rossi
encontraram o facto de se amarem. Não foi coisa muito comum: ela tinha 32 anos,
era professora de Francês num liceu de Marselha e ele, de 17 anos, era seu
aluno. Em muitas escolas os professores passaram do estrado altaneiro para uma
secretária no meio da sala e dos alunos. Eram dias de querer mudar tudo e já.
Ela, divorciada e mãe de duas filhas; ele, a viver com os pais. Quando
ele fugiu para ir viver com ela, os pais dele levaram-na a tribunal. De todas
estas informações, marcou uma: ele ser menor. Condenada a uma pequena pena, que
foi amnistiada pela eleição do presidente Georges Pompidou, Gabrielle - a foto
que conheço dela, sentada num banco de jardim, frágil e cabelos curtos - foi
convocada para novo julgamento. Não aguentou, abriu o gás e matou-se.
O pastor protestante Michel Viot, também ele jovem, de 25 anos, citou o
profeta Isaías quando o caixão de Gabrielle baixou à terra, no cemitério
parisiense de Père Lachaise, em Paris: "Juízes humanos, face a Deus, vocês
perderam o vosso processo." Estive a fazer contas, por esses dias eu
estava a chegar a Paris e não me lembro da notícia. Lia muitos jornais mas
nesse tempo, eu, tolo, não lia os faits divers. Se calhar eu era um dos que
Serge Reggiani interpelava em Gabrielle, uma canção que logo surgiu: "Quem
estendeu a mão a Gabrielle?/ Quando os lobos se atiraram a ela..."
E, no entanto, eu poderia ter entendido Christian. Um pouco mais novo
do que ele, amei arrebatadamente Annie Girardot, uma das mulheres da minha
vida. Trintona, Girardot nunca soube de nada, mas ela iria ser a única mulher
de lábios finos que eu amei. Tudo por causa dos seus olhos que riam e da voz
grave... Vejam a coincidência: em 1971, o realizador André Cayatte convidou
Annie Girardot para fazer de Gabrielle Russier. Ao filme, chamou-lhe, belamente,
Mourir d"Aimer, Morrer de Amar... Um bom filme de Cayatte, mas sobretudo
uma interpretação soberba daquela que continuava a mostrar ao mundo, talvez a
fingir, que eu lhe era indiferente. Depois, mas logo a seguir, Charles
Aznavour, esse interminável que ainda há pouco nos visitou, fez uma bela
canção, melhor do que a de Reggiani, sobre Gabrielle e também lhe chamou Mourir
d"Aimer.
Extraordinário fait divers, que provocava tanta vontade de
representação. E ainda não referi o episódio admirável de uma... conferência de
imprensa presidencial. Pompidou tinha sido eleito em junho de 1969, depois da
demissão do De Gaulle. Ele tinha sido primeiro-ministro do general, viera do
Banco Rothschild mas era um intelectual, amigo de Senghor e de Aimé Césaire. Em
setembro, numa conferência de imprensa, e esta já dada como terminada, um
jornalista levantou-se e pediu desculpa por introduzir um fait divers.
Perguntou ao presidente o que pensava ele do suicídio da professora de
Marselha, acontecido dias antes.
É um grande momento de França. Pompidou estava sentado numa
escrivaninha, só, frente aos jornalistas. Tinha os dedos entrelaçados,
cotovelos pousados sobre o tampo. Mastigou em seco, moveu os dedos. Disse,
enfim, que não ia dizer o que pensou. Fez longa pausa, tirou os cotovelos do
tampo, inclinou-se mas continuou com as mãos amarradas uma na outra. E disse:
"Compreenda quem quiser." É o título de um poema de Paul Éluard, o
que provavelmente ninguém ainda dera por isso. E declamou: "Eu, os meus
remorsos foram/ A vítima conformada/ Com o olhar de criança perdida/ Essa que
se assemelha aos mortos/ Que são mortos para serem amados." O presidente
levantou--se, disse "é de Éluard", e foi-se embora.
O poema Compreenda Quem Quiser não foi certamente inspirado em Gabrielle
Russier - Paul Éluard escreveu-o em 1944. "O poeta da Resistência",
como lhe chamou Aragon, passara a Ocupação nazi a fazer versos, na
clandestinidade, que seriam lançados pelos caças britânicos sobrevoando a
França. Já com a guerra ganha, Éluard lançou aquele grito de compaixão e
indignação aos seus compatriotas. Em maio e no verão de 1944, na França
libertada, a turba dos valentes da 25.ª hora arrastava para a rua mulheres que
tinham dormido com soldados alemães. Vexavam, insultavam e rapavam-lhes os
cabelos. Há fotos dessas vítimas conformadas, de olhar de crianças perdidas -
longos, insuportáveis, dolorosos testemunhos calados.
Ah, como os faits divers nos ensinam a humildade de não julgarmos...
Pense nisso, leitor, quando lhe falarem da professora Brigitte que conheceu e
amou o aluno Emmanuel, no liceu.
Ferreira Fernandes
No DN
" Amo-te na pedra do caminho
que se pisa e não diz nada,
na quente penugem do ninho
e na núvem desgarrada
que anda aos tombos pelo céu...
Amo-te nas formas caprichosas e dolentes
das sombras da noite escura,
nas gotas da madrugada
que empalidecem a flor...
Amo-te no ribombo do trovão,
nos sonhos idealistas que persigo,
e nos passos incertos do mendigo
que procura a solidão..."
António Rosado
Nota: Trecho do poema -Profissão de fé.
que se pisa e não diz nada,
na quente penugem do ninho
e na núvem desgarrada
que anda aos tombos pelo céu...
Amo-te nas formas caprichosas e dolentes
das sombras da noite escura,
nas gotas da madrugada
que empalidecem a flor...
Amo-te no ribombo do trovão,
nos sonhos idealistas que persigo,
e nos passos incertos do mendigo
que procura a solidão..."
António Rosado
Nota: Trecho do poema -Profissão de fé.
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