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domingo, 16 de abril de 2017

A coragem de Vieira Pereira:

É por demais evidente que a sucessão de bons resultados económicos mergulharam a direita numa crise profunda, e basta visitar hoje alguns dos seus espaços de opinião para o confirmar. O panorama transporta-nos para um cenário ao estilo de Mad Max: uma paisagem pós-apocalíptica em que a escassez de recursos é total e onde um punhado de sobreviventes vasculha por indicadores desfavoráveis entre os despojos da estatística económica, perpetuando a aridez do deserto de ideias em que habitam.
Desesperada e desorientada, a direita vai se agarrando aos escassos indicadores que ainda vão aparecendo, mesmo os que se limitam a apresentar estimativas provisórias, muitas vezes erradas, e cuja interpretação é altamente subjectiva. Foi o caso em janeiro com o relatório da AMECO, que alguns não resistiram em aproveitar para insinuar que a carga fiscal subiu em 2016 – um disparate que o INE e até o próprio Conselho de Finanças Públicas vieram desmentir e demonstrar o contrário. E é também o caso do Indicador Avançado da OCDE divulgado esta semana e espremido até à última gota por um João Vieira Pereira claramente desidratado.
Vieira Pereira sabe que o Indicador Avançado da OCDE teve uma evolução impressionante em 2016, começando com uma inversão de trajectória em janeiro, superando a fasquia dos 100 em abril e ultrapassando o indicador respectivo para a Zona Euro em junho. Basta olhar para o gráfico para percebermos aquilo que a OCDE estimou ser o potencial a médio prazo da economia portuguesa ao longo de 2016.

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Sendo um indicador que projecta o desempenho económico num espaço de seis a nove meses, o gráfico ajuda a explicar o facto do défice em 2016 ter ficado abaixo de todas as previsões, incluindo as do próprio governo. É natural, portanto, após um período em que várias entidades estatísticas falharam em parâmetros como o défice, o crescimento e a taxa de desemprego, que o Indicador Avançado reflicta esses desvios. Ou seja, como a economia cresceu mais que o esperado, se ela passar a crescer só aquilo que se espera o indicador é ajustado, mas isso não significa que a economia não continue a crescer, como é óbvio.
Mas eis que surge Vieira Pereira, que depois de vários meses à deriva num deserto de indicadores estatísticos encontra finalmente um capaz de lhe matar a sede. E não vai de meias palavras: há uma “bomba relógio que está a ser montada na economia” e que “pode explodir a qualquer momento”, avisa, apresentando de seguida alguns sinais que considera preocupantes para tentar justificar o disparate que acabou de proferir.
A primeira preocupação de Vieira Pereira é o impacto do aumento da procura interna no crédito ao consumo (algo que é basicamente impossível de dissociar), mesmo sabendo que a aposta na procura interna está a ter resultados francamente positivos, e contrariando os preceitos neoliberais que Vieira Pereira tanto apadrinhou quando a direita estava no poder.
Em seguida elenca o investimento privado, considerando-o “anémico”. Pouco importa que tenha sido o maior dos últimos anos e que as perspectivas para 2017 continuem a ser positivas. Sobre o investimento público, insiste que está em queda “por opção política” de uma maioria parlamentar composta por PS, BE, PCP e PEV, quando já todos perceberam que isso não faz qualquer sentido. Até Teodora Cardoso já veio reconhecerque a redução está “relacionada com a significativa diminuição das transferências da União Europeia”, algo que foi o governo da direita a não acautelar em 2015.
A balança comercial é outra preocupação de Vieira Pereira. As exportações estão a bater recordes ano após ano, mas o que preocupa mesmo Vieira Pereira é o aumento das importações. Pouco importa que esse aumento seja sinal de duas coisas positivas: aumento do investimento (que requer importar máquinas e equipamentos) e recuperação económica. E pouco importa que o paradigma da direita seja insustentável: promover a queda das importações depende do colapso do consumo e do investimento.
Por fim, Vieira Pereira consegue apresentar um argumento ainda mais ridículo que os anteriores tentando minimizar a evolução do emprego. O facto de “continuar a subir mês após mês” são “boas notícias” mas que “não chegam ainda para nos alegrarmos com a taxa de desemprego”. Ou seja, não interessa que a queda do desemprego tenha alcançado níveis históricos no últimos meses (ainda em fevereiro foi a maior dos últimos 28 anos), o problema é mesmo a taxa de desemprego que este governo herdou.
Será certamente um exercício interessante revistar este texto daqui a um ano para tirarmos a limpo este palpite da “bomba relógio que está a ser montada na economia” e que “pode explodir a qualquer momento”. A julgar pelas palavras empregadas, é seguro pensar que Vieira Pereira não se importa de correr o risco de estar enganado, mesmo que isso comprometa a já débil credibilidade que alguns ainda lhe atribuem. E é aqui que entra a coragem de Vieira Pereira.
Na saudosa série britânica Yes, Minister (que ainda nos deu uma segunda ronda em Yes, Prime Minister) havia uma série de adjectivos universalmente reconhecidos como sendo plenamente eficazes a convencer ou a demover qualquer político sobre um qualquer tema. Se o objectivo era persuadir, os adjectivos a usar seriam simples,  rápidobarato e popular; se a intenção era dissuadir, os adjectivos seriam complicadomorosocaro e controverso. Mas se a finalidade era mesmo assegurar que a ideia nunca veria a luz do dia havia um outro adjectivo estupendamente eficaz: corajoso. Os políticos estremeciam de pavor sempre que o ouviam, pois sabiam estar perante o risco de sofrer danos reputacionais irrecuperáveis.
É precisamente esse adjectivo que me ocorre quando leio este texto de João Vieira Pereira – alguém que, não sendo um político, faz, ou tenta fazer, política. E neste caso, é seguro afirmar, política corajosa.

(Geringonça)

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