Já conhecíamos o método de lançar suspeitas, pôr partes de processos,
escutas, interrogatórios em alguns jornais e televisões e assim fazer
julgamentos na praça pública. Já suspeitávamos que existiam situações em que
agentes do poder judicial, não sendo capazes de obter provas para as suas
convicções, punham a correr no pasquim do costume a sua verdade para que, no
fundo, a pessoa fosse condenada, ferida no seu bom nome, na sua honra, e sem
que nada pudesse fazer contra isso.
Com o despacho de arquivamento do inquérito aberto a Dias Loureiro e
Oliveira Costa atingimos um novo patamar no caminho que estamos a percorrer
rumo à justiça popular. Sendo a perversidade suprema serem agentes de justiça a
promovê-la.
"(...) O que nos permite suspeitar que o verdadeiro objectivo da
celebração dos negócios (...) foi tão-só o enriquecimento ilegítimo de
terceiros à custa do prejuízo do Grupo BPN, nomeadamente e, pelo menos, de Dias
Loureiro, de Oliveira e Costa e de Al Assir, enriquecimento esse sob a forma do
pagamento de comissões." Ou seja, arquiva-se ao mesmo tempo que se
condena.
Este é apenas um exemplo das várias considerações com o propósito de
levantar suspeitas e comentários acusatórios que a procuradora do Ministério
Público faz no despacho em que conclui que não há matéria para fazer uma
acusação. Alguém que tem como imperativo legal apenas investigar, encontrar
provas ou concluir que não há base para prosseguir o processo decide insinuar e
usar a autoridade que lhe é dada pela lei para acusar sem provas.
Não será necessário discorrer sobre este ataque aos direitos
fundamentais ou sobre a, desta vez, descarada condenação na opinião pública
apenas baseada numa convicção de um agente de justiça. Até o mais desconhecedor
do Direito saberá que para alguém ser acusado tem de haver, ao menos, indícios
de provas e que para ser condenado as provas têm de ser sólidas.
A procuradora definiu uma nova forma de fazer justiça: condenar sem ser
tribunal e construir teses sem apresentar provas. O Ministério Público cospe no
Estado de direito e tabloidiza a Justiça.
Um dos aspetos mais preocupantes desta história é a normalidade com que
se continua a aceitar este ataque ao regular funcionamento das instituições,
que com este despacho atingiu uma nova dimensão.
Custa a entender, desde logo, a maneira como tantos órgãos de
comunicação social trataram de forma ligeira este brutal exemplo de mau
funcionamento da Justiça. A sensação é a de que há muita gente que se deixou
aprisionar a uma corrente, em voga há muito tempo, de que quem chama à atenção
para atropelos ao Estado de direito, às garantias básicas dos cidadãos em sede
de direito penal, à defesa do direito de presunção da inocência, à presunção de
inocência, à regra do contraditório, à não inversão do ónus da prova, à
vergonha que é a condenação na opinião pública com base em pedaços de escutas,
de interrogatórios ou tão-somente de opiniões, não passa de um defensor de
corruptos e de criminosos. Alguém que fale das evidentes irregularidades na
Operação Marquês é, claro está, um socratista. E, não duvido, quem se revoltar
contra este despacho será apelidado de defensor de Dias Loureiro. Não faltam
nem faltarão acusações de amiguismo ou pior.
Mas nem os órgãos de comunicação social sérios que olham para o lado
nem os colunistas que promovem a justiça popular são os mais responsáveis pelo
atual estado de coisas. A pergunta que deve ser feita é: estão os deputados, o
governo, o Presidente da República, juízes, magistrados do Ministério Público,
Ordem dos Advogados, políticos mais ou menos importantes, confortáveis com tudo
o que se tem passado na justiça criminal? No mesmo sentido: há algum destes
senhores ou organizações que desconheça, por exemplo, a gravidade para os mais
basilares direitos deste despacho de arquivamento em forma de sentença de
condenação?
Estou certo das respostas a estas perguntas. Não só sabem da gravidade
deste despacho como sabem que os atropelos sérios se vão sucedendo. Só que em
algumas situações as irregularidades trazem-lhes vantagens políticas ou, na
maioria das situações, têm, pura e simplesmente, medo. Medo que no momento em
que apontem o dedo ao estado das coisas surja uma "notícia" numa
primeira página do tabloide do costume dando conta de uma investigação real ou
inventada. Medo que se disserem alguma coisa sobre a infâmia que é aparecerem
escutas ou transcrições de interrogatórios nesse tabloide, ou que se critique a
forma como atuam, estes iniciem campanhas com insinuações ou apareçam
"notícias" prejudiciais. No fundo, um bando de cobardes que assistem
ao afundar do sistema que prometeram proteger e assobiam para o lado. E há os
autênticos colaboracionistas que são os políticos-colunistas que conseguem
escrever sobre o estado da democracia num tabloide que faz da divulgação de
partes de escutas e de interrogatórios em segredo de justiça uma atividade
corriqueira, da calúnia e da distorção de factos uma razão de ser, ou os
políticos e os jornalistas que calmamente comentam no canal dessa espécie de
jornal interrogatórios no Ministério Público do dia anterior.
O despacho em causa é um ataque feroz ao Estado de direito e consagra a
tabloidização da Justiça, mas serve também para nos recordar pela enésima vez a
cobardia e o autêntico colaboracionismo de muitíssima gente, sobretudo dos
nossos políticos. É que não há nada mais político do que a Justiça, no sentido
de que não há nada que interesse mais ao bem comum do que um regular e
democrático funcionamento da Justiça.
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