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terça-feira, 14 de março de 2017

O dia em que fui enganado por Jaime Nogueira Pinto:

Autor
                           Daniel Oliveira
O que todos soubemos pelos jornais foi isto: a Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa não queria que um grupo de extrema-direita organizasse um debate sobre Donald Trump, o Brexit e Marine Le Pen, de que Jaime Nogueira Pinto era o convidado, e, pressionada a direção da FCSH, esta decidiu, por razões de segurança, cancelar a conferência. Os jornais mais rigorosos explicaram que a decisão vinha de uma Reunião Geral de Alunos (RGA) que os estatutos da Associação de Estudantes obrigam a cumprir. A decisão não foi dela, como a própria direção da Faculdade veio sublinhar no seu comunicado.
Com base nesta informação, e em mais alguma, segui um automatismo que, podendo ser arriscado, me tem levado geralmente a posições corretas: o direito de todos falarem nos fóruns que eles próprios organizem é sagrado. Este direito não implica o direito de falarem em espaços virtuais ou eventos que sejam da responsabilidade de outros, mas dá a todos o direito de se juntarem para discutirem, sem limitações, as suas opiniões. A condição é que cumpram a lei e a Constituição da República. Sou, devo dizer, até mais libertário do que a nossa Constituição e oponho-me à proibição de organizações fascistas. Em contrapartida, arrepia-me a complacência que existe para com partidos de extrema-direita que albergam e beneficiam da participação de indivíduos que usam a violência e a coação sobre opositores como armas políticas. Em resumo, defendo mais liberdade de expressão e mais vigilância para com comportamentos criminais.
Este automatismo leva-me a ser especialmente claro na condenação de qualquer tentativa de censura (estou a falar de censura mesmo, não da limitação a um suposto direito ao insulto anónimo nas redes sociais) quando esta vem de áreas políticas mais próximas de mim. Sinto que tenho esse dever de coerência. Foi o que fiz no caso de Nogueira Pinto. É com aqueles de que mais discordamos que testamos de forma sincera os nossos valores democráticos.
Depois de ter escrito o meu texto de quinta-feira, várias pessoas anónimas e minhas conhecidas me chamaram a atenção para coisas que estavam, em toda esta história, mal explicadas. Tomei, devo confessar, os avisos como um sinal da velha cultura de barricada que se sente no dever de defender um lado só porque é o nosso. Até que os avisos começaram a chegar de pessoas muito mais insuspeitas. Quando a solidariedade com o diretor veio de forma claríssima da Reitoria da Universidade Nova e do Conselho da Faculdade (de que fazem parte figuras insuspeitas de “esquerdismo” como o empresário Pinto Balsemão, o banqueiro Vieira Monteiro, o embaixador Seixas da Costa e o dirigente da Fundação Aga Khan Nazim Ahmad) ficou claro que os avisos que recebi não eram infundados. Aquela gente não podia estar toda feita para calar Nogueira Pinto.
Em relação ao comportamento dos estudantes que se juntaram em RGA, nada mudou: eles tentaram mesmo calar os seus colegas. A Associação de Estudantes podia estar, como estava, estatutariamente obrigada a cumprir a inaceitável decisão que tomaram. Mas cabe a quem acredita na democracia não cumprir decisões que atentam contra ela. Não foi com uns e outros que fui injusto. Posso até compreender as suas preocupações, mas acredito que quem se bate pelo direito a contestar o poder vigente deve ser muito rigoroso na defesa da liberdade de expressão daqueles a que se opõem. Foi sempre por esquecer isto que os movimentos progressistas descambaram para o oposto do que defendiam. Foi com a direção da FCSH que eu fui injusto. Apesar de ter sido levado ao engano por Nogueira Pinto e os rapazes da Nova Portugalidade, tenho, neste texto, de repor a verdade. A culpa da direção, se a houve, foi de não ter sabido comunicar com clareza, desde o primeiro minuto, tudo o que sucedera.
Tomada a decisão da RGA e comunicada pela Associação de Estudantes à direção da Faculdade, esta decidiu não lhe dar seguimento. No entanto, o surgimento de ameaças difusas provocou receios no diretor. Este risco já seria motivo de repulsa por quem defende a liberdade de expressão. Só que, ao que parece, os membros da Nova Portugalidade propuseram ao diretor a presença de polícia na sala. Como sabe quem tem memória histórica, a tradição da autonomia académica recusa a presença de forças de segurança no interior das Universidades. Compreendo que isso não perturbe a rapaziada da Nova Portugalidade e muito menos incomode Nogueira Pinto, que apoiou de forma ativa, durante o Estado Novo, a repressão policial contra a liberdade de expressão e de manifestação dos seus colegas. Mas para os democratas, onde obviamente Nogueira Pinto não se inclui, esta é uma memória e importante e a proposta foi, como não podia deixar de ser, recusada.
A segunda proposta da Nova Portugalidade foi ainda mais preocupante e, acima de tudo, reveladora dos verdadeiros objetivos da organização: os rapazes propunham-se trazer o seu próprio corpo de segurança, uma espécie de gorilas, quem sabe de cabeça rapadas, para garantir um espetáculo dentro da Faculdade. A proposta também foi recusada. O raid feito por agitadores de extrema-direita externos à faculdade, no fim da semana passada, para intimidar membros da Associação de Estudantes (que foi invadida) e marcação de uma concentração do PNR só provam que a decisão foi acertada.
Não precisamos, aliás, de desenvolver grandes teorias. Foram os próprios membros da Nova Portugalidade a tornar público o seu objetivo, nas suas páginas de Facebook. Um dos seus dirigentes, Mário Bailão, escreveu: “Estou a enviar o cancelamento do evento para os principais sítios de notícias. Por favor, façam o mesmo, é da máxima importância que a nossa causa ganhe simpatia do público. Por outro lado a propaganda grátis certamente que ajudará a NP a crescer.” Nos comentários, Rafael Pinto Borges, também do movimento, responde: “Grande, grande trabalho hoje. Estamos de parabéns. Amanhã, verão, a novela continua.”
E a novela tem episódios que ou não foram contados ou, apesar de terem sido inicialmente referidos, foram depois esquecidos pelo seu principal protagonista. A verdade é que o diretor da FCSH, depois de perceber que havia riscos de segurança e que a Nova Portugalidade, em reação, se preparava para levar “gorilas” externos à instituição para dentro da faculdade, propôs um adiamento do debate a Jaime Nogueira Pinto. E que ele próprio aceitou, concordando que não estavam garantidas as condições para que a sessão se fizesse. No minuto seguinte, estava a contar ao “Observador” como tinha sido vítima de uma vil censura. Jaime Nogueira Pinto abusou da nossa boa-fé e fez passar por censura o que afinal foi um adiamento que contou com a sua concordância. Só falta saber se sabia da tentativa de ter capangas do grupo de extrema-direita na sua sessão.
Em resumo, os alunos presentes na RGA erraram ao tentar impedir a sessão, a Nova Portugalidade é composta por quem acha que pode chamar a polícia ou “gorilas” para dentro da faculdade, Nogueira Pinto fez-se vítima de um adiamento que ele próprio aceitou, o diretor da FCSH tomou a decisão que podia ser tomada e por isso contou com o apoio de todas as estruturas da Universidade e eu caí como um patinho no conto do vigário. Eu, a Associação 25 de Abril (que cedeu o seu espaço para a sessão) e muitos dos que, independentemente das convicções políticas de cada um, defendem a liberdade de expressão de todos.
Assim sendo, e apesar de ter sido movido pela repulsa que sinto perante qualquer tentativa de limitar a liberdade de expressão, sobretudo quando é o meu lado que as leva a cabo, devo um pedido de desculpas à direção da FCSH e aos meus leitores.
Se é verdade que cerca de 30 estudantes tentaram impedir um colóquio e que isso é condenável, tudo o resto não passou de uma fabricação de um grupo de extrema-direita que, nas páginas de facebook, assumiu que se tratava de um golpe de “publicidade grátis” e de uma manipulação de Jaime Nogueira Pinto, que fingiu ter sido forçado a um adiamento com o qual afinal concordou. Fui enganado.
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 13/03/2017) 

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