Baptista-Bastos, jornalista: "Durante mais de quatro anos vivemos
no terror das indecisões. Nunca soubemos o que nos ia acontecer, porque o
Governo agora escorraçado fazia tudo de malévolo para os mais desprotegidos,
sem dar contas e a seu bel-prazer. Acresce que uma comunicação social
emasculada, substituídas as direcções e as consequentes ‘remoções’ dos
colaboradores mais recalcitrantes, se tornou colaborante dessa miséria. Miséria
a larga dimensão. Como acentuou Pacheco Pereira, na ‘Quadratura do Círculo’,
esse terror atingiu o próprio espírito. Pensadas bem as coisas, há, de facto,
algo de blasfémia nesta cruzada de Passos e os seus. O rolo compressor de um
neo-liberalismo aplicado sem conhecimento da história, das singularidades
culturais e das próprias instâncias dos povos abalou fortemente as
características morais de cada qual. Portugal foi deles o mais afectado. Sem dó
nem piedade, uma gente escalavrada subtraiu, aos nossos compatriotas mais
indefesos, o pouco que os mantinha. Conheço razoavelmente a minha pátria amada;
e choro com ela o que lhe foi aplicado, em inimaginável crueldade. O pior é que
esta gentalha vai ficar impune. A França criou uma figura jurídica, a
‘indignidade nacional’, para castigar aqueles que haviam traído o conceito e o
princípio do patriotismo. Quem fez o que fez já se passeia pelos corredores do
Parlamento, com displicente desenvoltura. Dostoievky ensinou que Raskolnikov
nunca foi punido, nem sequer pela consciência. Aqueles, como eu, que festejaram
Abril e que por Abril se bateram, com a devoção de quem nada deseja a não ser
viver num sítio decente e asseado, sentiram um módico alívio e um modesto
regozijo quando Pedro, Paulo e adjacentes foram enxotados. Escrevo ‘módico’ e
‘modesto’ porque sou demasiado antigo para saber que não há conquistas
definitivas, e que a força do ‘sistema’ é quase descomunal. Mas tenho três
filhos e encho-me de orgulho quando os vejo, com outros milhares de jovens,
desfilar e gritar nas manifestações da liberdade e da justiça, e contra todas
as formas e métodos de repressão. Nunca lhes disse: ‘Tomem cuidado!’ Viver sem
risco é imoral. Eles são eles e são todos. Enfrentando a hipocrisia dos falsos
sermões; e aqueles que deixaram secar as límpidas lágrimas da emoção, porque já
a não têm; combatendo os vendilhões que evocam o nome sagrado e traem os
homens. É isso."
2 de dezembro de 2015
Malévolo: que deseja o que é ruim para os outros
Emasculada: castrada
Recalcitrantes: que resiste com teimosia, obstinado
Blasfémia: discurso, palavra proferida, que ofende fortemente uma
divindade, insulta uma religião ou tudo que pode ser considerado
Escalavrada: que ameaça ruína
Gentalha: corja, escumalha
Gentalha: corja, escumalha
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