Quando o pobre Francisco Assis decide dissentir, os argumentos usados
são retirados da poeira da guerra fria. O pessoal já não vai nisso. O Assis e
os Assis têm de procurar outras alamedas de justificação.
Chega a ser comovente, por néscio e calamitoso, a gesticulação da
direita e da direitinha, em VISTA de um governo de esquerda. Os preopinantes
que, em pelo menos dois diários, choramingam a sua superior ignorância, fazem
dó. Atribuem à esquerda todos os malefícios do mundo, desconhecendo (não fingem
desconhecer: desconhecem mesmo) o percurso da História e as batalhas
estabelecidas pelos homens para que a felicidade seja possível.
São aqueles que um velho jornalista de O Século chamava os “apedeutas”,
escarmentando, com essa palavra antiga, aqueles que, sem saberem coisa alguma,
punham-se sempre ao lado dos poderosos. Mas não vale a pena estrebuchar: as
coisas vão mudar, porque as coisas mudam naturalmente em ciclos que nenhuma
obstrução consegue EVITAR. Não sei se tudo vai melhorar; mas muita coisa vai
ser outra.
Nesta união aparentemente espúria, entre o PS, o PCP e o Bloco de
Esquerda, o facto em si só o é porque António Costa, inopinadamente, decidiu
interromper as derivas do seu partido, que sempre obedecera às cambiantes da
política de apoio ao capitalismo, aliando-se umas vezes ao PSD, outras ao CDS.
Há uma fatia larga das questões sociais que é comum àqueles partidos, embora no
PS, essa fatia larga, chamada “socialismo” fora colocada na gaveta e esta
zelosamente fechada à chave. Tão simples quanto isso. Quando o pobre Francisco
Assis decide dissentir, os argumentos usados são retirados da poeira da guerra
fria. O pessoal já não vai nisso. O Assis e os Assis têm de procurar outras
alamedas de justificação.
É evidente que esta união não é vista com olhos amenos entre muitos
militantes comunistas e socialistas. A cultura ideológica entre uns e outros
tem sido sempre de hostilidade, animada, estimulada e tantas vezes provocada
pelos próprios dirigentes dos dois partidos. Lançar gasolina para a fogueira
nunca deu bom resultado. Mas também é evidente que esta situação de
agressividade e, até, de desprezo pelo outro, não podia durar eternamente. A
própria circunstância de o Muro de Berlim ter sido destruído e a União
Soviética ter implodido explicam, talvez, o esmaecimento dos partidos
obedientes àquela linha. Penso que a ideia difusa de “fortaleza cercada” e
“inamovível” está historicamente ultrapassada. Na batalha dos dois sistemas, o
capitalismo venceu, mas nada, em História tem carácter permanente. O que está a
acontecer, em PORTUGAL, como em outros países, é significante. Pode a direita e
seus sequazes e estipendiados guinchar de susto e desespero, que nada evitará o
desenrolar dos acontecimentos. Claro que este avanço das coisas, o chamado
“processo histórico”, não será nunca linear e os obstáculos no caminho também
pertencem à natureza dos factos. Mas foi aberta uma ruptura, com as decorrentes
euforias e as consequentes traições e dissidências. Tudo está previsto.
O PS tem sido uma espécie de respaldo da direita. Os lugares são
equilibradamente distribuídos. A “alternância” nunca foi “alternativa” e tudo
corria no melhor dos mundos, tanto mais que, com o “socialismo na gaveta”, o
caminho estava facilitado. Uns iam para lugares bem remunerados, na
administração ou no privado; outros eram chutados para Bruxelas, quando o maná
foi aberto; outros, ainda, entravam na “diplomacia”, enfim, o forrobadó. Nem
tudo será arredado e a casa nunca ficará totalmente asseada. As raízes da
miséria moral são fundas e estão bem regadas, e o silêncio cúmplice é,
habitualmente, bem remunerado. No entanto, continuo a crer que a esperança tem
muitas vezes razão, e que, neste sentimento, não estou sozinho: milhões e
milhões de homens e mulheres caminham a meu lado.
Temos uma larga experiência do sofrimento, da dor e da repressão. E
temos, igualmente, um conhecimento largo da luta e da resistência. O nosso património
moral, cultural e intelectual é infinitamente superior ao “deles.” É preciso
que nos não esqueçamos.
(Baptista Bastos, in Jornal de Negócios, 06/11/2015)
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