A minha amiga é negra. Ainda há pouco eu não me lembraria de o dizer.
Nesta semana, ela obrigou-me. Claro, não foi do género "olha, escreve lá
no teu jornal que sou negra". Foi assim, ela estava a fazer uma coisa
solene e ficou de cara levantada - dizia uma jura pública - olhando-nos, olhos
nos olhos, a mim e a vocês também. Eu disse-me: está bem, Francisca, eu digo.
Ao João, seu irmão, ele morreu há dois anos, eu até já chamei
"preto". Ele, o mais cosmopolita dos meus amigos, apareceu-me com uns
sapatos a que os americanos chamam spectators. E chamam bem, porque, de couro
negro ou castanho e pala branca, os spectators atraem a atenção e só ficam bem
a quem os ousa usar. Invejo-os, porque me sei disléxico de alfaiataria. Foi o
que talvez me tenha levado a dizer ao João: "Pareces um preto de Nova
Orleães..." Ele gostou, olhou para os sapatos e pôs-me a mão no ombro:
"São bonitos, não são?" Acho que se permitiu a superioridade, a mão
no ombro, porque se aproveitou da minha nítida desvantagem no vestir. Geralmente
os irmãos Van Dunem tratam-me com menos sobranceria. Nem tanto por mim,
suspeito, mas porque eu fui "o amigo do Zé", o mais velho dos irmãos.
Eu e o José, jovens, íamos levar doces aos presos nacionalistas, 1968,
1969... Os guardas faziam diferença entre o branco e o preto, desprezavam este
e insultavam aquele. Nós regressávamos ao nosso bairro com aquela noção de
irmanados que os amigos só criam na infância ou na adolescência. O ter de ser
cumprido, a nossa areia vermelha aos pés, o futuro ali à mão, e nem orgulhosos
íamos, só juntos. Mas não era bem assim. O nosso risco era igual - e estávamos
de peito feito - mas o risco dos nossos não era igual. Em casa dele tinha
ficado a dona Antónia, a mãe do Zé, ela é que fazia os bolos e nos mandava
entregar. Ela sabia o risco do seu menino e do amigo. Eu partiria para o exílio
pouco depois e o Zé seria preso no campo de São Nicolau. Ela não sabia ainda é
que a espiral acabaria trágica, que o filho seria assassinado, já pés firmes
sobre a praia sonhada, em 1977.
A dona Antónia vive em Lisboa, tem 93 anos. Ah, com ela eu nunca me
permitiria a palavra "negra", nem agora, quando a palavra foi
conquistada pela Francisca. Não que a ofendesse, claro. Ela era, assumia e
praticava aquilo que era na nossa cidade - negra, o que não era mera
circunstância, era condição. Mas para mim a dona Antónia é a senhora, ponto. Às
vezes, agora, em Lisboa, quando ia recordar com o João ou falar com a
Francisca, eu puxava pelo antigamente dela. Eu deixava ir a conversa, como a
dona Antónia a faz, com silêncios, olhos tristes e boca amarga, mas estava
sempre a vê-la a entregar-nos o embrulho dos bolos para levarmos à prisão.
O pai da família foi sempre sóbrio comigo. Mateus van Dunem passava na
rua com o irmão, ambos silenciosos, ambos elegantes, vestidos à funcionário,
com gravata, o que era raro no bairro. Eles eram filhos duma derrota - negros
luandenses dos anos 1940, 50 e 60. Eu explico o que lhes aconteceu: a
República. A República burra, como tantas vezes acontece às coisas boas em
Portugal. O alto-comissário NORTON de Matos decidiu um erro: substituir a elite
angolana, os filhos da terra, os nativistas, os angolenses, por gente ida de
Portugal. Não percebeu que o que havia para perpetuar de Portugal em Angola era
a gente com quem Portugal se tinha cruzado.
Nas décadas de 1910 e 20, Manuel Pereira dos Santos van Dunem, o pai
dos dois irmãos que eu veria juntos tantos anos depois, o avô de Francisca, foi
perseguido, preso e desapossado dos bens. Aconteceu o mesmo a outros dirigentes
das associações, como a Liga Angolana, encerrada. O jornal dele, O Angolense,
foi fechado, tal como a sua tipografia Mamã Tita. Aos filhos de toda essa
geração esperariam quase só lugares subalternos de funcionários. Abandonavam as
casas tradicionais da Cidade Alta e Ingombotas e foram, afastando-se para os
bairros periféricos, como o nosso bairro, o meu e do Zé, São Paulo.
A minha amiga chegou jovem a Portugal, a sua universidade foi a de
Lisboa, casou com um açoriano, pariu um português, trabalhou em Portugal,
tornou-se portuguesa e continuou negra. Nos anos 1930, a geração do avô de
Francisca pagou para que se erigisse um monumento, em Luanda, a Luís Lopes de
Sequeira, o crioulo. No século XVII, esse mulato derrotou os reinos de então,
numa Angola que não existia. Lopes de Sequeira, cabo-de-guerra, servia Portugal
e acabou por fazer Angola, porque sem ele provavelmente ela não o seria. A
história capricha nos seus caminhos e da importância destes dirá o que vier.
Ah, agora compreendo... O olhar de Francisca não queria que eu dissesse
que ela era negra, mas que contasse tudo isto.
Ferreira Fernandes
No DN
Ferreira Fernandes
No DN
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