Passos Coelho, Anjo
Estive a ouvir Portas e Coelho na festa do Pontal, marcando a rentrée
política pafiana e fiquei espantado com tanta desvergonha, desplante e mentira.
É difícil batê-los no campo da pantominice e do cinismo. Autênticos
carteiristas encartados, capazes de roubar o transeunte, ficar-lhe com todo o
dinheiro e depois entregar a carteira ao espoliado fazendo-o desfazer-se em agradecimentos
por, ao menos, ter escapado ao calvário de ser obrigado a renovar todos os
documentos.
Portas mimou o papel do polícia mau. Atacou o PS, acenou com cenários
de catástrofe, a bancarrota ao virar da esquina, e pasme-se, com a destruição
da Segurança Social por parte do PS, devido à redução da TSU para os
trabalhadores. Portas foi uma sobremesa meia indigesta que, mais que dizer que
nós somos os melhores, foi dizendo que os outros são piores que nós.
Coelho fez o papel do polícia bom. Parecia um rapazinho vestido de
anjinho na procissão do Senhor dos Passos. Parecia o Almeida Garret, em “As
minhas asas”:
Eu tinha umas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Que, em me eu cansando da terra,
Batia-as, voava ao céu.
Depois, tentou falar para os portugueses que não gostam do PAF. Que
compreende o azedume dos portugueses que lhe fazem um manguito: “Se queres
fiado, toma”. Ele até concorda que os portugueses estejam de costas voltadas
para ele, diz o aldrabão. Mas diz também que agora é que é. Que quer uma
oportunidade para governar, passadas que são as dificuldades, diz ele, – ó
inaudita falta de vergonha -, que quer governar com maioria absoluta!
Não vou analisar em profundidade os efeitos de destruição e caos social
que as políticas deste governo promoveram: aumento da pobreza, do desemprego,
das desigualdades, destruição das classes médias, emigração em massa,
diminuição do PIB, do investimento, aumento da dívida pública, dívida em nome
da qual justificaram todas as tropelias e atentados aos trabalhadores,
pensionistas, e todos os grupos sociais mais vulneráveis.
Quem tivesse o mínimo de vergonha não se dirigiria agora a esses mesmos
grupos sociais pedindo-lhes o voto e a renovação de mais quatro anos de
suplício. Mas não. Passos acha que pôr umas asas e falar com vozinha a tender
para o embargado, qual menino de coro em dia de comunhão, é o suficiente para
se fazer passar pelo cordeiro que não é, recuperando a confiança que não
merece. E isto sem apresentar qualquer plano quantificado para a governação que
quer renovar. Sobre o futuro nem uma palavra. Sobre como o país pode crescer e
melhorar nem uma palavra. Sobre como poderemos pagar a dívida, dentro das
constrições do Euro e do tratado orçamenta, nem uma palavra.
Passos acha que a sua retórica
mistificadora é suficiente para alterar a realidade que ele próprio criou e
promoveu. Como se a realidade pudesse ser construída e a história reconstruída
apenas com base num cardápio verbal soprado pelos seus conselheiros de
marketing político.
O que o leva a acreditar nisso? Será o homem inimputável, uma espécie
de esquizofrénico que ouve vozes a quem obedece, por muito esquisitas e
irrealistas que sejam as tarefas de que é incumbido? Viverá num universo
paralelo, numa realidade autista que é a sua e que só ele conhece?
Decididamente não. O que leva
Passos a tentar encenar este número de prestidigitação, e a tentar fazer
passa-lo como verosímil, é essencialmente o terreno que a oposição,
nomeadamente o Partido Socialista, lhe tem oferecido de mão beijada. É esse
território, essa fresta, que Passos vai tentar preencher até ao dia das
eleições. Porque a oposição que quer ser governo não lhe desmonta as mentiras
sem dó nem piedade. Porque não traz para o topo do debate político de forma
atempada e incisiva todas as trapalhadas, negociatas, e até ilegalidades, que
vão sendo cometidas pelo Governo. A história dos cartazes é reveladora. Depois
do ocorrido, até parece que o desemprego não existe, e que só estão
desempregados figurantes irreais, tal como nos querem fazer acreditar Coelho e
Portas. Assim, um dos trunfos eleitorais que o PS poderia usar com propriedade
para desmistificar a retórica passista caiu por terra com estrondo e sem
glória.
É que não basta apresentar um programa macroeconómico e uma estratégia
para o País, se não se consegue passar a mensagem ao eleitorado de que a
aplicação de tal programa pode conduzir a uma melhoria das condições de vida
dos cidadãos. Poucos entendem as minudências técnicas de um cenário macroeconómico,
por muito coerente que seja, mas mais depressa muitos poderão ser capturados
pelos chorrilhos declamativos de Passos e pelas mentiras a que reiteradamente
recorre. É pois, aí, no campo do slogan, que o PS tem que deixar de ser uma
espécie de grupo de amadores que se reúne no Largo do Rato para tomar café.
Como é espantosa tanta moleza e tanta complacência com a vigarice
“pafiana”, pode perguntar-se porquê tanta inoperância, tanta tibieza, não
combatendo Passos no seu próprio terreno.
Em primeiro lugar, o PS parece estar refém do seu próprio passado. O
lastro do anterior governo ainda pesa, e muito. Sócrates é uma espécie de urubu
negro que paira no ar. A apresentação do programa macroeconómico teve como
objetivo chancelar como credível um conjunto de alternativas às atuais
políticas de austeridade emanadas de Bruxelas, sem contudo colocar em causa as
constrições do Euro, do pagamento da dívida e do Tratado Orçamental. A questão
é que Passos Coelho sabe, e António Costa também sabe, que a margem, a fresta
para fazer diferente, em termos de política económica, é muito estreita. Isto
leva a que as propostas do PS surjam como que inquinadas à partida porque
devedoras da má consciência que advém do facto de não ter havido, pelo menos
até ao momento, a coragem de dizer isso mesmo aos eleitores. Ou seja, Coelho
sabe que Costa não pode dizer aos eleitores que fazer diferente, em termos de
política económica, no atual quadro de inserção do país na Europa e no Euro, é
quase tão difícil como fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha. Se o
dissesse, seria desculpabilizar todos os dislates que o governo atual foi
praticando nos últimos quatro anos.
Ora, como o PS não ousa sequer discutir tal inserção (“a Europa é
indiscutível”, como disse recentemente António Costa), por muito
bem-intencionados que sejam os seus desígnios e as suas preocupações sociais,
elas são facilmente postas em causa pelas campanhas de intoxicação pafianas.
Restam os eleitores e os cidadãos, a quem não são deixadas
alternativas, e que, ao que parece, só podem almejar, como resultado final de
governação das próximas eleições, a escolha entre o péssimo e o sofrível. Mas
entre o péssimo e o sofrível, não direi, ainda assim, que venha o diabo e
escolha. Apesar de tudo, que venha o sofrível.
(Estátua de Sal, 15/08/2015)
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