(Estátua de Sal, 10/07/2015)
Eu olhei para ti e o teu nariz indiciava que estavas constipado. Estava
meio para o vermelhusco. Mas, isso sou eu que não percebo nada de indícios. O
Juiz Alexandre e o Procurador Rosário, não. Esses são especialistas em
indícios.
Tiveste azar. O Rosário cruzou contigo, quando foste à farmácia comprar
Nasonex, olhou-te para o nariz e viu logo que a constipação era uma grande
tanga. Tu eras, sim, um cocainómano inveterado, via-se logo pelo nariz, e lá
foste engavetado, por fortes indícios de consumo de drogas. Recorreste da pena,
claro, mas como podias continuar a snifar, mantiveram-te em preventiva para o
Rosário poder discernir a proveniência do pó.
Foram-te ver as contas bancárias. Azar o teu. Tinhas comprado no Ebay,
uma mala Louis Vuitton, daquelas caras mas chiquérrimas, que estava ao preço da
chuva, e tinhas pago com a conta do Paypal. Quando o Rosário viu a transação
compreendeu tudo. Era um forte indício de que além de snifares ainda eras
traficante. Sim, porque ninguém compra malas que venham vazias. O pó vinha lá
dentro, de certeza. Conclusão: passaste a ser acusado de tráfico de droga,
branqueamento de capitais e fraude fiscal.
A partir daqui, o Rosário entrou em ebulição. Mandou a Judite lá a
casa. Tragam a mala. Mais uma vez, azar o teu. Tinhas querido preservar o
seleto cabedal, das traças e de outra bicharada, pelo que tinhas espalhado
naftalina em profusão por dentro e por fora. Quando o Rosário viu os tons
esbranquiçados, não teve dúvidas: não eram fortes indícios, era a prova acabada
do crime e, por consequência, da sua sageza.
Mas o Rosário não ficou por aí. Continuou a ver-te os extratos
bancários. E, azar o teu. Há quatro anos, antes da crise, tinhas tido uns
quinze dias maravilhosos de férias na Colômbia, acompanhado por uma namorada que
tinhas conhecido num chat da Internet. Estava tudo claro. Já não eram só fortes
indícios. Era óbvio que só podias pertencer à rede de tráfico do Pablo Escobar
ou de outro traficante qualquer. O Rosário era brilhante.
E lá foste apodrecendo os ossos na pildra.
Achaste que tudo isto era uma grande ignomínia, até porque, O Correio
da Manhã, sem tu perceberes como, fazia grandes manchetes noticiando que estava
em vias de ser desmantelada uma importante rede de tráfico de droga da qual tu
serias o cabecilha. E mais, a tal namorada, que já não vias há dois anos, e que
tos tinha posto com o teu melhor amigo, era apresentada como tua cúmplice e
também cabecilha da rede. Azar o teu. Um mal nunca vem só.
Os advogados lá iam metendo recursos. Queriam que o Rosário te acusasse
ou que o Alexandre te mandasse para casa. Que não, que não podia ser. Que o
processo era de “especial complexidade”. Havia que contactar o FBI, a Interpol,
a CIA, a Mossad e esperar a resposta. Logo, toma lá mais três meses de
chilindró.
Entretanto o Rosário afadigava-se. Parecia um perdigueiro. Sentia que
tinha em mãos um caso graúdo, e que tal exigia especial perícia investigatória.
Mandou pedir, à agência de viagens, a lista de todas as viagens que
tinhas feito nos últimos dez anos, na expetativa que alguma delas te tivesse
sido “oferecida”, o que indiciaria eventual corrupção. Azar o teu. Há dois anos
tinhas feito férias no Algarve e ficado alojado em Vale do Lobo. Quando soube,
o Rosário entrou em delírio. Era a prova que faltava. A prova das provas.
No dia seguinte, o Correio da Manhã, trazia em grande caixa, como sendo
os últimos desenvolvimentos da Operação Marquês: DINHEIRO PARA SÓCRATES TAMBÉM
PROVINHA DA COLÔMBIA. E desenvolvia o tema. Traficante de droga, transportava
dinheiro para Sócrates em malas Louis Vuitton. A investigação suspeita que as
entregas seriam feitas no empreendimento de Vale do Lobo, pelo traficante, a
quem Sócrates pagava as férias para poder receber as verbas.
Eu sei que tu achas que tudo isto é uma grande injustiça. Uma
conspiração. Que nunca snifaste, que a namorada te traiu, que não conheces o
Sócrates de lado nenhum, que não fizeste nada, e que só apanhaste uma
constipação. Eu sei tudo isso, pois sei. Mas não te vale de nada o que sabemos
ambos.
Mas olha, deixo-te um conselho. Se conseguires sair vivo desta, não te
cruzes mais com o Rosário e evita ires à farmácia onde ele compra o Libidum
Fast que o Futre anuncia, em dupla e libidinosa companhia. E, de preferência,
não te constipes outra vez. Fica mais barato pagar a vacina da gripe do que
pagar aos advogados.
E, enquanto estiveres preso, vai lendo livros policiais, mas dos
melhores: Conan Doyle, Agatha Christie, Dashiell Hammett e outros que tais.
É que, há gente que errou na profissão, como parece ser o caso do
Procurador Rosário. Devia sonhar ser escritor de romances policiais e carrega o
fardo de uma vocação reprimida. E a frustração dá nisto, como vês: consegue
fazer de uma constipação um caso de polícia. Na verdade, é um grande autor de literatura
policial. Mas da má. Da que cheira a cordel por todo o lado.
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