Preservar a privacidade das
pessoas é um objetivo estimável. Devia ser aliás preocupação de toda a gente -
afinal, é um valor fundamental, consignado em todas as constituições de Estados
modernos democráticos. Daí que, à partida, não veja nada de escandaloso na
criação de um sistema que vise acautelar a consulta indevida, por parte de
funcionários da administração, de dados fiscais - e mesmo, admito, num sistema
que detetando um universo de contribuintes que atraiam mais a
"curiosidade" vise apertar a malha no que respeita à devassa das suas
declarações contributivas e respetiva utilização indevida.
Não é democrático e há até quem
avente crime numa lista desse tipo? Não sei que crime pode estar em causa, mas,
se vejo todas as privacidades igualmente dignas de recato, sei que não são
todas atacadas por igual, o que poderá, em teoria, justificar medidas
específicas. O problema será sempre a prática: quem, com que critérios e fito,
definiria o universo dos contribuintes com proteção reforçada? E quem tem
legitimidade para aprovar tal definição? E aí, já se percebeu, tudo nesta
estória está errado. Não só a lista terá sido pensada na sequência de
revelações sobre o historial contributivo do PM como ninguém quer assumir a sua
existência, paternidade, responsabilidade e critério, o que nunca é um bom
sinal.
Ontem, não só vimos a revista
Visão comprovar documentalmente a existência da dita lista como foi difundida a
informação de que esta conteria apenas quatro nomes (o do PM, do PR e do
vice-PM, mais o do secretário de Estado da Administração Fiscal). A ser assim -
difícil crer, apesar de tudo -, a lista não seria uma medida de preservação de
privacidade de pessoas avaliadas como sendo de alto risco de
"ataque", aceitável embora discutível, mas uma clara
instrumentalização da administração pública por parte de interesses privados.
Os interesses das personalidades em questão e das forças e setores políticos
que representam, assim protegidos por uma aplicação informática especialmente
criada para o efeito pelo Estado - e em ano eleitoral.
O mesmo ano eleitoral em que
assistimos diariamente à "revelação", nos media, de alegadas peças
processuais e informações apresentadas como estando em segredo de justiça,
incluindo matérias do foro privado (e até político) sem que no governo uma sobrancelha
se levante, quanto mais se proponham medidas, por exemplo de alerta
informático?, para o evitar. O mesmo ano em que o governo propõe uma outra
lista - a de abusadores sexuais com pena cumprida, obrigados a viver em
perpétua exposição e infâmia - alegando para tal dados falsos sobre
reincidência. Proteger a privacidade (intocabilidade) de uns, atacar e anular
as de outros, usando o aparelho de Estado, a insídia e a demonização como meio
para os dois fins: o método tem barbas e bastos exemplos históricos. Dá ideia é
que há muita gente sem memória. Ou distraída.
FERNANDA CÂNCIO
Hoje no DN
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