Peço licença aos leitores para contar uma história, no mínimo kafkiana,
que experimentei há uns dias. Era uma vez uma carteira preta, de pele,
desorganizada e amontoada de lixo como todas as carteiras de adolescentes que
batem à porta da idade adulta. Mas tinha tudo: cartão do cidadão, cartão de
estudante da Faculdade de Direito, multibanco, carta de condução, registo
automóvel, fotografias, canhotos do Euromilhões, algum dinheiro, pouco, e até
um santinho protetor. São assim os segredos de um filho.
Certa noite do fim de semana, e de forma irresponsável, a carteira
desapareceu. Foi o desespero e a culpa. De impulso, dirigimo-nos à esquadra
mais próxima. Mas se era para fazer uma participação seria melhor estar quieto.
Sim, porque graduado que se preze, quando em convívio com os seus agentes, não
está para ser incomodado com coisas de putos. Que a comunicação não é
obrigatória, que os documentos podiam aparecer em 48 horas, que é melhor
esperar e mais um arsenal de argumentos a desaconselhar a queixa. Valha-nos
que, apesar de tudo, ainda há esquadras, outras, que têm polícias dos outros.
Daqueles que mesmo de madrugada e ensonados fazem aquilo para que também são
pagos.
Ultrapassadas a resistência e a burocracia, e feita a participação em
Alfornelos, ala para casa, tudo somado, os relógios marcavam quatro da manhã.
No dia seguinte, ao princípio da tarde, entra em cena o Tito Ferreira.
Um desconhecido de 18 anos bem-educados e bem formado. Via Facebook - abençoado
Zuckerberg - envia uma mensagem a perguntar se na noite anterior, nos bares de
Santos, tinha havido alguma baixa. Que sim, responde o meu miúdo. Uma carteira,
a tal que é preta, de pele, e amontoada de lixo que só ele sabe para que serve.
Tito, herói improvável desta história, dá então a boa notícia. Ele e
mais duas amigas, Patrícia Cunha e Patrícia Falcão, "acharam" a
carteira abandonada. Puseram de lado por instantes as "curtes" com os
amigos e foram à procura de um lugar seguro, uma esquadra da PSP, para entregar
a carteira perdida. Miúdos decentes, portanto, que não é de mais elogiar quando
tantas vezes se diz que já não há bons valores nem bons princípios.
O meu miúdo agarrou no telefone de um salto e ligou para a polícia.
Mas, surpreendentemente, bateu na trave. Que não havia nenhuma carteira. E se
houve é porque "foi entregue na mudança de turno" e o agente que a
recebeu "não teve tempo" de cumprir os procedimentos. Provavelmente
guardou-a num cacifo ou levou-a para casa para fazer o auto quando voltasse a
estar de serviço. "E quem é o agente?", pergunta o rapaz. "Não
sabemos. Isto é um anexo da super-esquadra e passa por aqui muita gente".
Como? E não há regras? E, já agora, leis?
Posto isto, o rapaz é mandado ir à "esquadra-mãe" na manhã
seguinte, à hora de expediente. É o que faz. E cara-a-cara com um comissário
eis que o inacreditável é assumido: a carteira desapareceu. Ninguém sabe dela.
Levou sumiço dentro das instalações mesmo por entre os dedos da polícia.
"Estão a gozar comigo?", pergunta o miúdo, desesperado. "Claro
que não", garantem-lhe. E que não se preocupe, que a PSP assume as
despesas todas das segundas vias. Era o que faltava que assim não fosse.
Incrédulo e indignado com a história que me estava a ser contada, faço
alguns telefonemas. E algumas conversas depois o meu miúdo liga-me.
"Parece que já apareceu, mas só acredito quando vir", diz-me,
desconfiado. A arrogância e a indiferença iniciais dos polícias pareciam ter
dado lugar ao esmero e à diligência. E volvidos poucos minutos a carteira é
entregue, com promessas de inquérito interno e processo disciplinar aos agentes
negligentes.
Moral da história
1 - "Quem tem medo morre cedo", diz a sabedoria popular. E o
que ressalta deste episódio é que este é um país triste, muito triste. Bastaram
uns telefonemas para que a PSP, provavelmente por saber que o pai é jornalista,
mudasse de atitude e se esmerasse na busca da carteira. Tal como a justiça, a
polícia tem de ser cega, surda e muda e tratar todos por igual. E o que é
lamentável é que, manifestamente, para alguns polícias uns cidadãos são mais
iguais do que outros.
2 - Ao Tito e às Patrícias felicito-os por, na ingenuidade dos seus 18
anos, serem honestos e desejo que nunca lhes falte a coragem de continuarem a
ser decentes. Mesmo que alguns polícias, que todos pagamos, lhes digam, pelo
exemplo ou falta dele, que "o crime compensa".
NUNO SARAIVA
Hoje no DN
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