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sexta-feira, 24 de maio de 2013

Dos maus tratos:


Estive no Parlamento há uma semana, a assistir ao debate da coadoção. E, como muitos outros, não consegui evitar a comoção ante o resultado. Tinha ainda muito presentes as histórias de famílias que recolhera para a reportagem que assinei no DN nesse dia, os nomes das crianças a quem aquela votação reconhece não só que as suas duas mães e os seus dois pais de verdade e amor serão também as suas duas mães e os seus dois pais de lei, mas que o ordenamento jurídico português não lhes continuará a dizer que vivem em famílias "com defeito".
Surpreendi-me com a votação como me surpreendi com o ambiente nos corredores: abraços, sorrisos, uma quase beatitude. Um deputado do PSD confidenciou: "É em dias assim que sinto estar aqui a fazer alguma coisa." Se havia raiva - e houve, e há - não a vi ali. Acho que se calhar quem tanto se opõe a que as crianças que vivem com casais do mesmo sexo sejam protegidas como crianças "normais" foi apanhado de surpresa pelo facto de o Parlamento português seguir o entendimento do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (THDH), que em fevereiro obrigou a Áustria a mudar a lei que impedia a coadoção em casais do mesmo sexo, certificando tratar-se de uma discriminação inaceitável - a das crianças que vivem com essas famílias. Ou, quiçá, quem assim pensa ignora a decisão do TEDH. Faz sentido: quem se opõe a que a coadoção seja estendida a casais do mesmo sexo invoca geralmente a "natureza". Se calhar não deu conta de estarmos a tratar de legislação, que é uma coisa muito artificial que regula a vida em sociedade, e de adoção, que é a forma de suprir a ausência de uma família biológica. Consequentemente, não terá reparado que a lei portuguesa não impede um homossexual de adotar, desde que o faça de modo singular, nem uma lésbica de engravidar. Como não pode impedir estes homossexuais com filhos de viver em união de facto ou de casar.
O que é que está, pois, em causa? Permitir que as crianças que foram adotadas ou dadas à luz por homossexuais deixem de ser discriminadas e tenham direito ao reconhecimento do outro membro do casal, unido de facto ou casado, como responsável parental. Só isto, mais nada. Espantoso que haja quem, como o bastonário dos advogados, Marinho e Pinto, se oponha a isto "em nome das crianças", alegando que "ninguém lhes perguntou nada" e comparando a coadoção em casais do mesmo sexo a maus tratos. Não sei se a Marinho e Pinto, suposto ser um homem de leis, falta a coragem de defender que a polícia vá arrancar estas crianças às mães e aos pais para as entregar a instituições ou famílias que ele considere "certas" - sendo essa a consequência lógica do que afirma. Mas tenho a certeza de uma coisa: não se atreveria a olhar nos olhos estas meninas e meninos de quem fala com tão cruel e arrogante irresponsabilidade e perguntar-lhes: "Olhem lá, têm a certeza de que não preferem outros pais? É que eu acho que os vossos não prestam."

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