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domingo, 19 de maio de 2013

Carta aberta à Leya, ao júri do Prémio Leya 2012 e ao vencedor Nuno Camarneiro:

Exlentíssimas senhoras e senhoras, dirijo-me a vós através desta carta aberta... a propósito do convite que recebi da Leya para a cerimónia de entrega do Prémio Leya 2012, “atribuído ao romance DEBAIXO DE ALGUM CÉU, de Nuno Camarneiro, à qual se digna presidir Sua Excelência o Senhor Presidente da República, Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. “ Sou escritor editado pela Leya desde a sua fundação, através da Casa das Letras, uma das editoras do grupo. Com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz publiquei quer nas marcas atuais da Leya, quer nas das suas antecessoras, oito romances e novelas. Com o meu nome de batismo, de Carlos de Matos Gomes, publiquei ainda na Editorial Notícias um livro de história contemporânea (Guerra Colonial).
Tive sempre o melhor acolhimento nas editoras do grupo Leya, provas de grande simpatia, de elevada e de lisonjeira consideração, para além do mero relacionamento profissional. Entendo que os prémios literários são um estímulo e um reconhecimento aos escritores, nada me movendo contra os prémios literários. Nutro apreço intelectual pelos membros do júri que decidiu o prémio, a quem saúdo. Por fim, não conhecendo o Nuno Camarneiro, do que dele percebi pela comunicação social e do que li do seu romance só posso tê-lo na conta de uma pessoa bem formada, de um cidadão informado, sensível e consciente, de um escritor talentoso.
Por todas as anteriores razões devia aceitar com prazer o convite e estar presente na sessão de entrega de alma alegre e fato bem composto. O facto de ela ser presidida por “Sua Excelência o Senhor Presidente da República” mais deveria reforçar o meu sentimento de ir cumprir com agrado e galhardia um acto de solidariedade e de partilha de um momento feliz para um escritor e para a literatura, pois essa presença constituiria prova do interesse do Chefe do Estado, que representa a Nação, pela cultura do seu povo, neste caso na forma da arte que modestamente pratico.
Infelizmente é meu entendimento – e afirmo-o com profunda tristeza – que vivemos tempos em que a presença de “Sua Excelência o Senhor Presidente da República, o Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva” desprestigia e desqualifica a cerimónia de entrega de um prémio a um jovem cidadão português que se distinguiu pelo seu talento e mérito cultural. Aceitar o convite para estar presente, como gostaria, far-me-ia sentir cúmplice do engano que é fazer passar a ideia de que o Estado Português cumpre as suas funções de apoio à cultura e à identidade do povo que constitui a Nação e aqui chegou com a identidade que o carateriza e individualiza.
Porque me sinto tão ofendido que não aceito, sequer, partilhar uma sessão de entrega de um prémio literário a um jovem escritor presidida por Sua Excelência o Presidente da República? Eis algumas das minhas razões:
Porque o senhor Prof Doutor Aníbal Cavaco Silva é o chefe de um Estado para quem os portugueses, todos os portugueses são fatores de produção, nada mais. Para quem eu, o Nuno Camarneiro, os administradores da Leya, mais os das empresas patrocinadoras, os membros do júri, os agentes culturais, todos somos, antes de tudo e, desconfio, nada mais do que contribuintes, pagadores de impostos; ou desperdícios causadores de despesa, de défice e de dívida, enquanto reformados e pensionistas.
Porque o Estado de que o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva é o chefe tem de forma deliberada, e hoje em dia para mim evidente, desenvolvido e posto em prática um programa de empobrecimento dos portugueses destinado a fazer deles uma “força de trabalho” mais barata e mais “competitiva, em que a cultura é tida como um fator de resistência, de bloqueio, uma dificuldade, um custo, até um perigo por pretender cidadãos mais realizados enquanto seres humanos, logo mais cultos e informados, mais dignos, em suma. É esse programa geral de embrutecimento dos portugueses, colocando-os na situação da luta pela sobrevivência do dia a dia, retirando-lhes meios e forças para mais do que buscarem o estritamente essencial, que levou a atriz Maria do Céu Guerra a interrogar-se há pouco, no final de uma representação, se não seria “este” o seu último espetáculo, como alguns escritores se interrogam se não será “este” o seu último romance, e músicos se não será “este” o seu último concerto, ou os artista plásticos se não será “esta” a última exposição, se não estaremos todos os que criam, os que dão alma e conteúdo ao que é ser português a realizar os últimos atos de cultura, da nossa cultura, porque nada sobra depois de exauridos pelos impostos do Estado em nome de um programa dito de “reajustamento”, sobre cujos verdadeiros objetivos o que sabemos em cada dia que passa nos levanta maiores suspeitas de embuste.
Dir-me-ão algumas vozes que devia separar a função da pessoa. Talvez, mas não consigo. Recordar-me-ão outros o meu passado, que já vivi situações de bem difícil gestão entre a lealdade institucional e a lealdade à minha consciência. Fui militar durante o antigo regime, o do Estado Novo, que teve como último chefe de Estado o almirante Américo Tomás e sempre participei nas cerimónias a que “se dignou” presidir. Fi-lo até uns tantos militares da minha geração, entre os quais me incluí, decidirmos dirimir pela força as nossas razões sobre quem representava o Estado e o povo, correndo todos os riscos. Revoltei-me. Revoltávamo-nos. Ganhávamos ou perdíamos. Foi o tudo ou o nada do 25 de Abril de 1974 e das datas intermédias que se seguiram até chegarmos a este regime democrático em que vivemos e que é o meu. Assumo-o.
Assumo a parte da responsabilidade que me cabe neste regime e por isso é maior a minha amargura por não poder hoje revoltar-me e, por isso, não poder aceitar partilhar um momento de celebração de um acto cultural como é o da entrega do prémio literário da Leya, em que está presente o chefe de Estado legitimamente eleito segundo as regras da Constituição democrática da República Portuguesa.
Dir-me-ão outras vozes que o meu gesto é ridículo e insignificante. Compreendo essas críticas, mas direi, também sem qualquer alegria, que ninguém é ridículo por não querer estar numa sessão presidida pelo Prof Doutor Aníbal Cavaco Silva; nem, ao pé dele, qualquer cidadão é insignificante.
Excelentíssimas senhoras e senhores administradores da Leya, ilustres membros do júri, caro Nuno Camarneiro, meus confrades escritores, criadores artísticos em geral: não posso estar presente numa cerimónia destinada a homenagear um jovem português distinguido por outros dos seus pares porque ela é presidida pelo chefe de um Estado que deu posse e mantém um executivo para quem eu e os portugueses como eu somos qualquer coisa entre um animal de corte, de que os donos tanto extraem leite enquanto vivos, como lhe comem a carne depois de mortos, e um escravo cujo trabalho é dado como penhor de uma dívida.
Um executivo para quem é sempre mais fácil atirar um pobre para a miséria do que beliscar na sobremesa de um rico. Um executivo que renega as noções matriciais da justiça, da dignidade e que retira aos portugueses a esperança, o último alento para sobreviver.
Quero continuar a ser um cidadão desta República, quero continuar a ser livre, a exigir respeito aos que me rodeiam, a ser nem mais nem menos do que todos os outros cidadãos europeus, a partilhar com eles a minha história e da minha cultura, a não ser para eles a subespécie de seres humanos europeus de que o Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva parece muito satisfeito em ser o chefe de Estado.
Paço de Arcos 8 de Maio de 2013
Carlos Vale Ferraz/Carlos de Matos Gomes

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