Exlentíssimas senhoras e senhoras, dirijo-me a vós através desta carta
aberta... a propósito do convite que recebi da Leya para a cerimónia de entrega
do Prémio Leya 2012, “atribuído ao romance DEBAIXO DE ALGUM CÉU, de Nuno
Camarneiro, à qual se digna presidir Sua Excelência o Senhor Presidente da
República, Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva. “ Sou escritor editado pela Leya
desde a sua fundação, através da Casa das Letras, uma das editoras do grupo.
Com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz publiquei quer nas marcas atuais da
Leya, quer nas das suas antecessoras, oito romances e novelas. Com o meu nome
de batismo, de Carlos de Matos Gomes, publiquei ainda na Editorial Notícias um
livro de história contemporânea (Guerra Colonial).
Tive sempre o melhor acolhimento nas editoras do grupo Leya, provas de
grande simpatia, de elevada e de lisonjeira consideração, para além do mero
relacionamento profissional. Entendo que os prémios literários são um estímulo
e um reconhecimento aos escritores, nada me movendo contra os prémios
literários. Nutro apreço intelectual pelos membros do júri que decidiu o
prémio, a quem saúdo. Por fim, não conhecendo o Nuno Camarneiro, do que dele
percebi pela comunicação social e do que li do seu romance só posso tê-lo na
conta de uma pessoa bem formada, de um cidadão informado, sensível e consciente,
de um escritor talentoso.
Por todas as anteriores razões devia aceitar com prazer o convite e
estar presente na sessão de entrega de alma alegre e fato bem composto. O facto
de ela ser presidida por “Sua Excelência o Senhor Presidente da República” mais
deveria reforçar o meu sentimento de ir cumprir com agrado e galhardia um acto
de solidariedade e de partilha de um momento feliz para um escritor e para a
literatura, pois essa presença constituiria prova do interesse do Chefe do
Estado, que representa a Nação, pela cultura do seu povo, neste caso na forma
da arte que modestamente pratico.
Infelizmente é meu entendimento – e afirmo-o com profunda tristeza –
que vivemos tempos em que a presença de “Sua Excelência o Senhor Presidente da
República, o Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva” desprestigia e desqualifica a
cerimónia de entrega de um prémio a um jovem cidadão português que se
distinguiu pelo seu talento e mérito cultural. Aceitar o convite para estar
presente, como gostaria, far-me-ia sentir cúmplice do engano que é fazer passar
a ideia de que o Estado Português cumpre as suas funções de apoio à cultura e à
identidade do povo que constitui a Nação e aqui chegou com a identidade que o
carateriza e individualiza.
Porque me sinto tão ofendido que não aceito, sequer, partilhar uma
sessão de entrega de um prémio literário a um jovem escritor presidida por Sua
Excelência o Presidente da República? Eis algumas das minhas razões:
Porque o senhor Prof Doutor Aníbal Cavaco Silva é o chefe de um Estado
para quem os portugueses, todos os portugueses são fatores de produção, nada
mais. Para quem eu, o Nuno Camarneiro, os administradores da Leya, mais os das
empresas patrocinadoras, os membros do júri, os agentes culturais, todos somos,
antes de tudo e, desconfio, nada mais do que contribuintes, pagadores de
impostos; ou desperdícios causadores de despesa, de défice e de dívida,
enquanto reformados e pensionistas.
Porque o Estado de que o senhor Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva é o
chefe tem de forma deliberada, e hoje em dia para mim evidente, desenvolvido e
posto em prática um programa de empobrecimento dos portugueses destinado a
fazer deles uma “força de trabalho” mais barata e mais “competitiva, em que a
cultura é tida como um fator de resistência, de bloqueio, uma dificuldade, um
custo, até um perigo por pretender cidadãos mais realizados enquanto seres
humanos, logo mais cultos e informados, mais dignos, em suma. É esse programa
geral de embrutecimento dos portugueses, colocando-os na situação da luta pela
sobrevivência do dia a dia, retirando-lhes meios e forças para mais do que
buscarem o estritamente essencial, que levou a atriz Maria do Céu Guerra a
interrogar-se há pouco, no final de uma representação, se não seria “este” o
seu último espetáculo, como alguns escritores se interrogam se não será “este”
o seu último romance, e músicos se não será “este” o seu último concerto, ou os
artista plásticos se não será “esta” a última exposição, se não estaremos todos
os que criam, os que dão alma e conteúdo ao que é ser português a realizar os
últimos atos de cultura, da nossa cultura, porque nada sobra depois de
exauridos pelos impostos do Estado em nome de um programa dito de
“reajustamento”, sobre cujos verdadeiros objetivos o que sabemos em cada dia
que passa nos levanta maiores suspeitas de embuste.
Dir-me-ão algumas vozes que devia separar a função da pessoa. Talvez,
mas não consigo. Recordar-me-ão outros o meu passado, que já vivi situações de
bem difícil gestão entre a lealdade institucional e a lealdade à minha
consciência. Fui militar durante o antigo regime, o do Estado Novo, que teve
como último chefe de Estado o almirante Américo Tomás e sempre participei nas
cerimónias a que “se dignou” presidir. Fi-lo até uns tantos militares da minha
geração, entre os quais me incluí, decidirmos dirimir pela força as nossas
razões sobre quem representava o Estado e o povo, correndo todos os riscos.
Revoltei-me. Revoltávamo-nos. Ganhávamos ou perdíamos. Foi o tudo ou o nada do
25 de Abril de 1974 e das datas intermédias que se seguiram até chegarmos a
este regime democrático em que vivemos e que é o meu. Assumo-o.
Assumo a parte da responsabilidade que me cabe neste regime e por isso
é maior a minha amargura por não poder hoje revoltar-me e, por isso, não poder
aceitar partilhar um momento de celebração de um acto cultural como é o da
entrega do prémio literário da Leya, em que está presente o chefe de Estado
legitimamente eleito segundo as regras da Constituição democrática da República
Portuguesa.
Dir-me-ão outras vozes que o meu gesto é ridículo e insignificante.
Compreendo essas críticas, mas direi, também sem qualquer alegria, que ninguém
é ridículo por não querer estar numa sessão presidida pelo Prof Doutor Aníbal
Cavaco Silva; nem, ao pé dele, qualquer cidadão é insignificante.
Excelentíssimas senhoras e senhores administradores da Leya, ilustres
membros do júri, caro Nuno Camarneiro, meus confrades escritores, criadores
artísticos em geral: não posso estar presente numa cerimónia destinada a
homenagear um jovem português distinguido por outros dos seus pares porque ela é
presidida pelo chefe de um Estado que deu posse e mantém um executivo para quem
eu e os portugueses como eu somos qualquer coisa entre um animal de corte, de
que os donos tanto extraem leite enquanto vivos, como lhe comem a carne depois
de mortos, e um escravo cujo trabalho é dado como penhor de uma dívida.
Um executivo para quem é sempre mais fácil atirar um pobre para a
miséria do que beliscar na sobremesa de um rico. Um executivo que renega as
noções matriciais da justiça, da dignidade e que retira aos portugueses a
esperança, o último alento para sobreviver.
Quero continuar a ser um cidadão desta República, quero continuar a ser
livre, a exigir respeito aos que me rodeiam, a ser nem mais nem menos do que
todos os outros cidadãos europeus, a partilhar com eles a minha história e da
minha cultura, a não ser para eles a subespécie de seres humanos europeus de
que o Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva parece muito satisfeito em ser o chefe
de Estado.
Paço de Arcos 8 de Maio de 2013
Carlos Vale Ferraz/Carlos de Matos Gomes
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