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sábado, 2 de junho de 2012

QUIM-BANDIDO CAPITÃO DA MINHA INFÂNCIA:

Um dia, já lá vão uns anos, eu e a minha esposa fomos passar um fim-de-semana a casa dos meus compadres Jaime e Flôr, que vivem na Cruz de Pau, em Amora. Na tarde de Domingo, uma bela tarde soalheira, resolvemos ir até ao Seixal comer uns caracóis e refrescarmo-nos com umas cervejas fresquinhas e bem tiradas. Por conselho do meu compadre, conhecedor daquelas paragens, fomos parar à sede do Futebol Clube do Seixal, onde, segundo ele, se comiam os melhores caracóis. E na verdade, como pude constatar, ele tinha razão!
Numa mesa contígua à nossa, estavam quatro cavalheiros com uma intenção tão prazenteira como a que nos levara ali. Um deles, sentado à minha frente, não parava de me fixar, como se me conhecesse de algum lado. Pela minha parte, também me parecia que aquela cara não me era totalmente estranha. E do armazém da minha memória veio a lume a imagem do Quim-Bandido. Mas logo pus de parte essa ideia, por absurda que era, pois sabia que ele estava em África, no Botswana. Não fazia sentido que estivesse ali, do outro lado do Tejo, longe da terra que o viu nascer. E posta a ideia de lado, continuei a deliciar-me com os caracóis, que estavam realmente deliciosos.
Joaquim Pinto nasceu em Freamunde, por volta de mil novecentos e trinta e sete. Era, portanto, um ano mais velho que eu. Na Escola Primária, liderada pelo saudoso professor Francisco Fernandes Valente, o Quim era o rei das brincadeiras e partidas que pregava aos colegas…
Lembro-me perfeitamente, por exemplo, de ele andar por baixo das carteiras, com um alfinete na mão, a picar o rabo dos colegas! Estes, ao sentirem-se picados, reagiam à dor da maneira mais silenciosa possível pois, se o denunciassem, no fim da aula, já na rua, era o bom e o bonito.
Eu estava livre das picadas por dois motivos. Primeiro, porque me sentava numa cadeira da frente, bem à vista do professor e, depois, porque ele tinha um certo respeito por mim. E também porque eu tinha mais físico do que ele.
No entanto, a estatura não impedia que ele fosse o nosso Capitão. O Bando era constituído pelo meu primo Humberto, o Má-Pê, filho do Zeca Foice, e por mim. Capitaneados pelo Quim, fazíamos assaltos à fruteira da Linarda do Gaudêncio, às uvas do Casimiro das Elviras e aos ameixos  do Arnaldo Cruz. Eu não tinha coragem de assaltar. A minha missão era ficar a vigiar. Ainda hoje não sei porque é que ele tinha a alcunha de Quim-Bandido.
Quando O Quim fez treze anos, o pai, que estava em Angola como trabalhador emigrante, chamou-o para junto de si. Nas vésperas da partida, o Bando fez-lhe uma festa de despedida na Carreira de Sumatos, com lanche e tudo. Comprámos alguns pães, uns pirolitos, eu roubei no armazém do meu pai umas latas de sardinhas de conserva e a coisa até se compôs. Foi assim a despedida do Quim-Bandido.
Depois, em África, o Quim levou uma vida de trabalhos e aventuras. Fez o serviço militar em Angola, defendendo as cores portuguesas com honra e galhardia. O seu apelido de criança não teve razão de existir em toda a sua vida no ultramar. Quando se deu a independência de Angola, o Quim (como milhares de outros portugueses) teve que abandonar o país, deixando para trás todo o produto de dezenas de anos de labuta e sacrifícios.
Ao regressar a Portugal, o Quim, como é óbvio, veio a Freamunde, a sua terra natal, onde estavam todos os seus amigos do Bando. Encontrámo-nos num abraço apertado de amizade e saudade. Confidenciou-me, então, que já tinha projectos para o futuro. Tinha trabalho assegurado no Botswana. Pouco tempo esteve em Freamunde e partiu novamente sem se despedir de ninguém.
Tinham-se passado perto de trinta anos, quando um primo dele veio dar a notícia.
- Morreu o Quim-Bandido!
- O quê? Coitado! E então como foi?...
- Como foi, não sei. Só sei que está enterrado em Freamunde.
- Mas, não é possível. Então ele não estava no Botswana?
- Não. Já há alguns anos que vivia do outro lado do Tejo, na zona do Seixal.
Caí das nuvens. Lembrei-me daquele olhar na sede do Seixal. Fiquei com a certeza de que estive a poucos metros do Capitão da minha infância.
Nunca mais me perdoo…
Não, nunca mais me perdoo.
Nunca mais.
Porque é que eu não me dirigi a ti e com delicadeza perguntei: 
«Desculpe, mas não nos conhecemos de algum lado?!»
Tão simples… Tão fácil… O que teria acontecido se eu tivesse feito isso?
Nunca mais me perdoo.
Peço-te desculpa, ó Capitão, pela minha timidez.
Depois de cinquenta anos em África, fizeste questão de vir dormir o último sono na terra onde nasceste. Obrigado, eterno amigo, pelo teu freamundismo. Do nosso Bando, dois já estão na tua companhia.
O único que ainda anda por cá é o autor destas linhas.
Até um dia, Capitão da Minha Infância.

Nélson Lopes 
Do livro "Contando 18 contos"  

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