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terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Garfo e a Colher:

Eram inseparáveis no bolso da casaca ou calças do João tanto nas boas como nas más horas. Os três davam-se bem. O que o João fazia ao Garfo também tinha de fazer à Colher se não os ciúmes davam cabo da boa harmonia. Quando o João saía da cela - quarto de dormir - se por qualquer motivo se esquecesse de algum, o outro dizia. - Vais ver o quanto te vai custar o esquecimento. Não comes a sopa - caso o esquecimento fosse da Colher. Ou não comes o presigo - caso fosse do Garfo.



Depois das refeições gostavam de ser lavados e murmurava o Garfo para a Colher antes de ser introduzido novamente no bolso. - Não tens dentes para serem lavados olha como os meus estão bem conservados e branquinhos! A colher - não sabe o motivo por que os não tem - contentava-se com a sorte para que foi criada e respondia. - Para que os quero… se tudo o que dou a engolir é mais água do que entulho - parte sólida da sopa.
Estas cenas eram frequentes e o João que não gostava de tomar partido por um ou outro sorria com a conversa tida entre ambos. Prometeu-lhes se um dia tivesse a felicidade de beneficiar de uma saída precária prolongada havia de arranjar maneira de os levar com ele mesmo sabendo que não era permitido. Queria mostrar-lhes como era a vida, vivida em Liberdade - Liberdade era a localidade onde moravam os familiares do João.
Para se ter direito a usufruir de saída precária prolongada tem de se ter bom comportamento, não sofrer qualquer castigo e o João nesse aspecto era um pouco arisco. A partir desse momento quando se ia meter em qualquer desordem com os companheiros era logo avisado ou pelo Garfo ou pela Colher. - Olha a saída precária! Por ser constantemente avisado a sua conduta melhorou e passado uns meses foi contemplado com a dita saída precária prolongada.
Quem ficou contente com esta situação foi o Garfo e a Colher que assim iam matar a curiosidade com o que iam ver em Liberdade (terra do João) tanto falada por ele mas acontece que só se lembrava dela quando não a tinha. Desde que se lembram, a sua vida era passada entre a cela, posto de trabalho e recreio, - tinham essa sorte porque o João era impedido na oficina de marcenaria e como na hora do almoço as celas não eram abertas era esse o motivo de andarem sempre na sua companhia - o que não era mau porque outros seus companheiros só saiam da cela para o refeitório e do refeitório para a cela.
Chegou o dia mais ansiado pelos três. Antes, tanto o Garfo como a Colher avisaram o João para que os escondessem bem para que à última hora não acontecesse nenhum imprevisto. Pediram para serem bem embrulhados, caso com o movimento do saco em que iam escondidos, não acontecesse de chocar um com o outro e com o tilintar fossem denunciados. Dito e feito. Na revista a que o João foi sujeito fez todos os possíveis para que os amigos não fossem descobertos o que acabou por acontecer.
Chegados a casa do João ficaram maravilhados com as condições habitacionais e locais, pois no recreio, ouviam colegas do João a contar tristezas do lugar e da casa em que habitavam assim como das péssimas condições socioeconómicas.
No primeiro dia tudo correu bem. Foi-lhes apresentada a Faca. Esta não fazia parte do utensílio que era entregue ao João e seus companheiros. Ficaram espantados pois não sabiam que existia tal figura mas em conversa entre ambos já tinham notado que algo fazia falta para cortar certos alimentos para serem tragados. Assim não era preciso andarem a afiar o seu cabo para servir de corte, o que era proibido, quando fossem apanhados nesta situação o seu dono era castigado e eles iam para a prateleira dos monos. Outros preferiam rifar com as mãos certos alimentos do que se meterem em aventuras, principalmente, os que não tinham dentes ou possuíam poucos. A Faca era muito nervosa e quando se zangava com alguém tornava-se perigosa e naquele meio podia dar em mãos que não a sabia usar.
O João levou-os a dar uma volta pelas redondezas e ficaram maravilhados com o que viram mas sempre com a ironia da Faca por os ver tão surpreendidos. Não estavam acostumados com a vivência em liberdade e não sabiam que havia outro tipo de talher. É o que faz uns nascerem num berço de ouro e outros numa manjedoura. Mas… não entraram em litígio. A partir daí mostraram sempre desagrado com o que ela dizia. Quando estavam os dois sozinhos comentavam que certas personagens deviam de ter um melhor conhecimento da vida para darem mais valor a essa mesma vida. Não era só conhecer a boa moeda a má também existe!
O João saía à noite e não os levava porque para onde ia a companhia deles não era bem aceite. Ficavam amuados e para mais tinham de gramar com a companhia da Faca que desde a chegada deles só pensava em tornar-lhes a vida num martírio. Já pensavam no regresso e o que desejavam era que chegasse o mais rápido possível porque além de estarem sempre fechados em casa, tinham medo da presença da Faca. Agora percebiam porque não era aceite no meio da comunidade em que viviam, tinha uma lâmina bastante afiada, à mínima questão a usavam para cortar o que quer que fosse.
Chegou o dia do regresso. O João mostrava pouca vontade de regressar mas avisaram-no que o devia fazer, ou que pelo menos, os levassem porque se davam melhor lá, que esta experiência não resultou, que era melhor viver com menos conforto mas ser bem aceite e acarinhados. Com este pedido lá o convenceram a regressar mas entre ambos combinaram que a partir daquele momento nunca mais o chamavam à atenção para ter bom comportamento com a finalidade de beneficiar de outra saída precária. Para exemplo bastou esta.
Para eles é melhor viver como vivem. Assim têm mais tempo e carinho para usufruir e gostam muito do João não querem ser abandonados. Só em pensar que um dia volta à liberdade ficam mal dispostos. Porque não sabem quem vem a ser o seu dono ou se vão ser separados.
Pode-se ser pobre e viver em fracas condições mas nada chega à amizade, lealdade, amor e carinho. São estas quatro palavras que os fazem resistir e encarar a vida com optimismo quanto ao futuro.

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