Eram inseparáveis no bolso da casaca ou calças do João tanto nas boas
como nas más horas. Os três davam-se bem. O que o João fazia ao Garfo também
tinha de fazer à Colher se não os ciúmes davam cabo da boa harmonia. Quando o
João saía da cela - quarto de dormir - se por qualquer motivo se esquecesse de
algum, o outro dizia. - Vais ver o quanto te vai custar o esquecimento. Não
comes a sopa - caso o esquecimento fosse da Colher. Ou não comes o presigo -
caso fosse do Garfo.
Depois das refeições gostavam de ser lavados e murmurava o Garfo para a
Colher antes de ser introduzido novamente no bolso. - Não tens dentes para
serem lavados olha como os meus estão bem conservados e branquinhos! A colher -
não sabe o motivo por que os não tem - contentava-se com a sorte para que foi
criada e respondia. - Para que os quero… se tudo o que dou a engolir é mais
água do que entulho - parte sólida da sopa.
Estas cenas eram frequentes e o João que não gostava de tomar partido
por um ou outro sorria com a conversa tida entre ambos. Prometeu-lhes se um dia
tivesse a felicidade de beneficiar de uma saída precária prolongada havia de
arranjar maneira de os levar com ele mesmo sabendo que não era permitido.
Queria mostrar-lhes como era a vida, vivida em Liberdade - Liberdade era a localidade
onde moravam os familiares do João.
Para se ter direito a usufruir de saída precária prolongada tem de se
ter bom comportamento, não sofrer qualquer castigo e o João nesse aspecto era
um pouco arisco. A partir desse momento quando se ia meter em qualquer desordem
com os companheiros era logo avisado ou pelo Garfo ou pela Colher. - Olha a
saída precária! Por ser constantemente avisado a sua conduta melhorou e passado
uns meses foi contemplado com a dita saída precária prolongada.
Quem ficou contente com esta situação foi o Garfo e a Colher que assim
iam matar a curiosidade com o que iam ver em Liberdade (terra do João) tanto
falada por ele mas acontece que só se lembrava dela quando não a tinha. Desde
que se lembram, a sua vida era passada entre a cela, posto de trabalho e
recreio, - tinham essa sorte porque o João era impedido na oficina de
marcenaria e como na hora do almoço as celas não eram abertas era esse o motivo
de andarem sempre na sua companhia - o que não era mau porque outros seus
companheiros só saiam da cela para o refeitório e do refeitório para a cela.
Chegou o dia mais ansiado pelos três. Antes, tanto o Garfo como a
Colher avisaram o João para que os escondessem bem para que à última hora não
acontecesse nenhum imprevisto. Pediram para serem bem embrulhados, caso com o
movimento do saco em que iam escondidos, não acontecesse de chocar um com o
outro e com o tilintar fossem denunciados. Dito e feito. Na revista a que o
João foi sujeito fez todos os possíveis para que os amigos não fossem
descobertos o que acabou por acontecer.
Chegados a casa do João ficaram maravilhados com as condições
habitacionais e locais, pois no recreio, ouviam colegas do João a contar
tristezas do lugar e da casa em que habitavam assim como das péssimas condições
socioeconómicas.
No primeiro dia tudo correu bem. Foi-lhes apresentada a Faca. Esta não
fazia parte do utensílio que era entregue ao João e seus companheiros. Ficaram
espantados pois não sabiam que existia tal figura mas em conversa entre ambos
já tinham notado que algo fazia falta para cortar certos alimentos para serem
tragados. Assim não era preciso andarem a afiar o seu cabo para servir de
corte, o que era proibido, quando fossem apanhados nesta situação o seu dono
era castigado e eles iam para a prateleira dos monos. Outros preferiam rifar
com as mãos certos alimentos do que se meterem em aventuras, principalmente, os
que não tinham dentes ou possuíam poucos. A Faca era muito nervosa e quando se
zangava com alguém tornava-se perigosa e naquele meio podia dar em mãos que não
a sabia usar.
O João levou-os a dar uma volta pelas redondezas e ficaram maravilhados
com o que viram mas sempre com a ironia da Faca por os ver tão surpreendidos.
Não estavam acostumados com a vivência em liberdade e não sabiam que havia
outro tipo de talher. É o que faz uns nascerem num berço de ouro e outros numa
manjedoura. Mas… não entraram em litígio. A partir daí mostraram sempre
desagrado com o que ela dizia. Quando estavam os dois sozinhos comentavam que
certas personagens deviam de ter um melhor conhecimento da vida para darem mais
valor a essa mesma vida. Não era só conhecer a boa moeda a má também existe!
O João saía à noite e não os levava porque para onde ia a companhia
deles não era bem aceite. Ficavam amuados e para mais tinham de gramar com a
companhia da Faca que desde a chegada deles só pensava em tornar-lhes a vida
num martírio. Já pensavam no regresso e o que desejavam era que chegasse o mais
rápido possível porque além de estarem sempre fechados em casa, tinham medo da
presença da Faca. Agora percebiam porque não era aceite no meio da comunidade
em que viviam, tinha uma lâmina bastante afiada, à mínima questão a usavam para
cortar o que quer que fosse.
Chegou o dia do regresso. O João mostrava pouca vontade de regressar
mas avisaram-no que o devia fazer, ou que pelo menos, os levassem porque se
davam melhor lá, que esta experiência não resultou, que era melhor viver com
menos conforto mas ser bem aceite e acarinhados. Com este pedido lá o
convenceram a regressar mas entre ambos combinaram que a partir daquele momento
nunca mais o chamavam à atenção para ter bom comportamento com a finalidade de
beneficiar de outra saída precária. Para exemplo bastou esta.
Para eles é melhor viver como vivem. Assim têm mais tempo e carinho
para usufruir e gostam muito do João não querem ser abandonados. Só em pensar
que um dia volta à liberdade ficam mal dispostos. Porque não sabem quem vem a
ser o seu dono ou se vão ser separados.
Pode-se ser pobre e viver em fracas condições mas nada chega à amizade,
lealdade, amor e carinho. São estas quatro palavras que os fazem resistir e
encarar a vida com optimismo quanto ao futuro.
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