Rádio Freamunde

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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O meu primeiro Natal em Freamunde:

"Uma das coisas que mais me impressionou quando, há quase quarenta anos, troquei o Porto por Freamunde foi a noite de consoada, a véspera de Natal.
Ocorreu-me esta recordação pela proximidade desta tradicional festividade, em que todos prometemos a nós próprios sermos melhores no futuro, dedicarmo-nos mais ao nosso próximo, prestarmos outra atenção à miséria que nos rodeia, acabarmos com rixas e polémicas mesquinhas que, em comparação com a imensidade do Universo e com a brevidade da Vida, são miseravelmente insignificantes. E como este é o último "Fredemundus" antes do Natal, decidi recordar outros Natais e não hostilizar ninguém com os habituais reparos, nem responder a quem me tem hospitalizado: - hoje é "péssanga", como se diz nos jogos infantis. A minha resposta aos meus (inimigos,não!) detractores, é o meu mais sincero desejo que tenham um Natal Feliz e possam, como eu, reflectir um pouco sobre a caricata inutilidade das nossas dissenções, o ridículo de alguns dos nossos argumentos, por vezes verdadeiras armas para nós próprios apontadas...Não: - hoje não respondo a ninguém! Hoje é Natal e eu desejo, de todo o coração, a maior felicidade e alegria a todos, mesmo sabendo que muitos - e tantos eles são... - não conseguirão alcançar o quanto aqui lhes desejo...Tempo haverá ainda para nos aborrecermos e para nos afastarmos estupidamente nesta sala de espera da Morte que é a Vida...Hoje não! Feliz Natal para todos! Feliz Natal para o operário e para o seu patrão! Feliz Natal para as crianças que nos ajudam com a sua beleza a suportar a Vida! Feliz Natal para os que têm letras a vencer! Feliz Natal para quem vai aumentar a sua fortuna neste ano prestes a findar! Feliz Natal para aquele canceroso sem esperança! Feliz Natal para o militar, que o vai passar de sentinela! Feliz Natal para o gatuno que me furtou o porta-notas! Feliz Natal para o polícia que me multou o carro mal estacionado! Feliz Natal para aquela simpática menina do quiosque que sempre me atende com um sorriso! Feliz Natal para os que estão na cadeia justamente! Feliz Natal para os que padecem de injustiças! Feli Natal para os irmãos Cavaco, os Victores e todos os infelizes assassinos, presos ou à solta! Feliz Natal para Otelo Saraiva de Carvalho e para os juízes que o julgaram! Feliz Natal para os que fizeram o 25 de Abril e nele acreditaram! Feliz Natal para os que se esforçam por o fazer esquecer! Feliz Natal para aquele pobre que dorme numa soleira de porta ou num banco de jardim! Feliz Natal para os que têm fome e para os que têm de recorrer aos sais de fruta Eno! Feliz Natal para quantos me lerem e para os que nem sequer sabem que eu tenho a impertinência de o fazer! Feliz Natal para mim e para os meus e para ti e todos os teus! E até, se possível para quem ia a acompanhar aquele funeral que passou ontem por mim! E, já agora, Feliz Natal para o que ia de pés para a frente e que deixou de poder desejar Feliz Natal aos outros!...
O primeiro Natal que passei em Freamunde foi um assombro para mim. Até então, sempre tivera a noite de Natal como a mais aborrecida de quantas o ano tinha. Era a noite em que não valia a pena sair de casa, em que tinha de quebrar o hábito de comer o jantar à pressa, de atirar breves "Boas-Noites!" aos meus velhos e saltar para a rua à procura dos amigos com quem me entreteria até às tantas...Nessa noite a cidade do Porto era um autêntico deserto: tudo fechado - cafés, clubes, cinemas, teatros e, mesmo as igrejas, poucas celebravam a "missa do galo" à meia-noite. Nas ruas, nem viv' alma!. Raros os automóveis naquela época e um ou outro eléctrico vazio que passava fazia-o com grande alarido de ferros e carris que, face ao silêncio pouco usual do ambiente, me parecia redobrado, avassalador, catastrófico..., estendendo-se no tempo à medida que o bruto se afastava, rua fora...Um ou outro solitário, que regressava de possível consoada em casa de um amigo, com quem fora partilhar a sua solidão, fazia-o furtivamente, rosto escondido na gola do sobretudo levantada, marcando a sua passagem com um ritmado "tic-tac" de tacões no passeio cimentado, apressado e esquivo, como que fugindo à solidão que o envolvia...
Era assim o Natal no meu Porto dessa época!...Para um boémio como eu, habituado à vida nocturna, não havia nada a fazer senão recolher tristemente a "penantes" ou nem sequer se atrever a sair à rua...E para a filosofia da minha mocidade de então, era, simplesmente, um dia a menos na Vida: os anos só tinham 364 dias, visto que as noites eram, para mim, o que então contava...
Em Freamunde era totalmente o contrário: toda a gente, após a ceia da consoada, vinha para a rua. Os cafés regorgitavam de gente. As famílias visitavam-se. Nos clubes havia alegria, confraternização, jogos, música...E à meia-noite, a "missa do galo" era como uma festa, com foguetes e tudo, a que não se podia faltar...Um espanto!...Inacreditável!...Um deslumbramento!...Tinha acertado com a terra que, ainda para mais, também me oferecia nas outras noites fortes motivos para estar satisfeito...Que diferença do Natal da minha mocidade!...E que longe tudo já está...! Como recordo aquela noite de Natal em que, ainda muito criança, jurei que havia de surpreender o Pai Natal a colocar os tradicionais brinquedos no meu sapatinho...
Juntos, minha irmã e eu, decidimos não pregar olho e ficamos de sentinela à espera da sua chegada...Mas o "João Pestana" era mais forte e, aos poucos, com os grãoszinhos de areia que trazia no saco às costas, lançava-os nos nossos olhos arregalados e lá nos foi obrigando a cerrar as pálpebras. De súbito, um ruído para os lados da cozinha, fez-me, penosamente, entreabri-las...Era meu pai que, já na cama, lembrava-se dos brinquedos e se levantara para os ir colocar nos nossos sapatinhos...Minha irmã já dormia profundamente quando ele passou pelo nosso enconderijo e pelos meus olhos toldados pelo sono e estupidamente abertos...
Mas, no dia seguinte, não me contive e confessei-o a minha santa mãe:
Ontem vi o Pai Natal chegar!...
Viste?! - duvidou ela.
Vi! Vinha em ceroulas! Se calhar já se ia deitar!...
Feliz Natal para vós, crianças que sonhais!...Feliz Natal para vós, Pai Natal em ceroulas!... "
Fernando Santos - Coisas Minhas


"A minha homenagem"


O Porto, Freamunde e Portugal
devem a este irmão, filho e cidadão,
pelos anos de amor e servidão,
uma parte do seu historial.


Não lhe batam mais palmas, por favor,
as palmas e palmadas que levou
por aquilo que já nos orgulhou
sentem-se nesta sala, p´lo calor.


obrigado por tudo, senhor Santos,
Freamunde cobriu-o com seus mantos
e correu Portugal, de ponta a ponta,


pela mão deste filho que adoptou
que nunca do seu pai se envergonhou
por ter que pagar cara a sua conta.

Poesia ilustrada: Rodela / Inô Vitor
  

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